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O negócio de fazer derramar lágrimas

Da Praça Taksim ao Rio de Janeiro, da Praça Syntagma a Nova Deli, passando pelo Chile ou o México, os protestos populares têm sido atacados por uma nuvem venenosa. O jornal Página/12 conversou sobre o assunto com Anna Feigenbaum, que investiga a história política do gás lacrimogéneo na Universidade de Bournemouth, no Reino Unido.
Turistas num restaurante no centro de Istambul este sábado. Lá fora, a nuvem de gás lacrimogéneo invadia de novo a cidade. Foto Yigal Schleifer/Twitter

A história do gás lacrimogéneo parece ter sido reescrita nas últimas décadas. É uma arma química ou não é? É uma arma letal ou não?

Nos protocolos de guerra da ONU, é uma arma química. O que ocorre é que no final da Primeira Guerra Mundial vários países, em especial os Estados Unidos, embarcaram numa ofensiva para manter a sua produção em tempos de paz. Os Estados Unidos lançaram uma estratégia específica de “marketing” com a polícia, guarda nacional e até realizando exibições especiais na Casa Branca para demonstrar a sua utilidade. Assim, criaram a procura pelo produto. Do lado da oferta, ou seja, da produção, a indústria do gás lacrimogéneo modernizou o complexo industrial-militar, que tinha começado a desenvolver no início do século, aceitando a cooperação entre químicos da universidade, militares, a burocracia estatal e as corporações privadas.

Porém, hoje, rebatizou-se o produto. Não se fala em “arma química” como na Primeira Guerra Mundial. Isso causaria horror. O que temos é uma arma “não letal”.

Este jogo com a linguagem aconteceu no início. Por um lado, oferecia-se o gás lacrimogéneo como uma arma multiuso, para atacar e se defender, que inicialmente teve como principal função a ruptura de greves. Ao mesmo tempo, enfatizava-se que não era “tóxica” e que não produzia nenhum dano duradouro. Foi um grande movimento de relações públicas, evidenciado por uma investigação em 1939.

Em que momento se “universaliza” o uso do gás lacrimogéneo, para aquilo que se chama controle das multidões?

Nos anos 1930, começa-se a exportá-lo para as colónias e países periféricos. Os Estados Unidos utiliza-o nas Filipinas e no Panamá, o governo britânico na Índia. Na época, também no Médio Oriente, embora exista discordância, a esse respeito, entre os historiadores.

Nos anos 1960, era comum na paisagem das manifestações latino-americanas.

É uma das coisas mais perigosas que aconteceu, porque o uso de gás lacrimogéneo foi banalizado, quando na realidade se trata de um veneno que ocasiona uma série de danos comprovados, muito mais sérios do que é admitido a nível oficial, principalmente perigoso para as pessoas que possuem problemas respiratórios, problemas epiléticos ou pessoas mais velhas. E ao nível político é também muito perigoso, porque está a banalizar-se um tipo de resposta repressiva sobre o direito de livre expressão e reunião.

O argumento da indústria e dos governos é que ele é melhor do que as armas para o controle de manifestações e distúrbios. Chamam-lhes não letais e o Departamento de Estado disse que “salvam vidas”.

Na Turquia, no Egito, no Bahrein, o gás lacrimogéneo está a ser utilizado como se fosse uma arma, ou seja, é usado em lugares fechados e, às vezes, como munição que se dispara contra alguém. A ideia de que é melhor do que outras armas, como as armas de fogo, tem dois problemas básicos. Primeiro é que, do ponto de vista dos direitos civis, concebe-se que a alternativa está na arma de fogo ou no gás lacrimogéneo, ao invés de se concentrar na possibilidade da mediação, do diálogo e da solução dos problemas que motivaram o protesto. Então, a opção passa a ser: nós os metralhamos ou envenenamos com gás lacrimogéneo. O segundo problema é que o gás lacrimogéneo, normalmente, é usado junto com outras formas de controle de massas, como os canhões de água ou as balas de borracha. Isto faz parte de sua origem militar. Na Primeira Guerra Mundial, o gás lacrimogéneo foi pensado como um precursor para outras formas de ataque, já que obrigava os soldados a saírem de suas trincheiras e deixavam-lhes expostos a outras armas mais letais. Algo semelhante acontece nas manifestações. O gás lacrimogéneo cria caos, impede que as pessoas possam se proteger, expondo-as a outras formas de ataque.

Você tem um mapa do uso, em nível mundial, do gás lacrimogéneo, em 2013. É notável que na Europa da austeridade há vários países que o usaram, desde Alemanha e Bélgica até Espanha e Grécia.

Houve um aumento dos protestos, a partir do estouro financeiro de 2008, e outro desde que começaram as medidas de austeridade. Ao mesmo tempo, vimos uma resposta cada vez mais violenta ao protesto. Viu-se, neste protesto, um maior uso de gás lacrimogéneo, balas de borracha e do restante de material antidistúrbios. Também assistimos a um novo deslizamento semântico, a partir da crescente importância da indústria antiterrorista e dos métodos para lidar com os protestos. Recentemente, uma especialista israelita em políticas policiais disse-me que a tecnologia estava a ser usada contra os militantes israelitas, com o mesmo tipo de treino e de forças utilizadas para casos de terrorismo. Trata-se do uso de táticas militares para o treino da polícia. Isto também faz parte da naturalização dos métodos de repressão.


Entrevista de Marcelo Justo para o Pagina 12. Traduzida por Cepat e publicada no site do Instituto Humanitas Unisinos.

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