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Políticas Culturais e Democracias Locais: desafios para as próximas eleições autárquicas (IV)
Plans are nothing, planning is everything
De modo a favorecer o potencial e a diversidade das práticas, as políticas culturais devem estar correlacionadas com o conjunto das políticas de desenvolvimento sustentável dos municípios, formando o que vem sendo reconhecido como o 4º pilar do desenvolvimento (humano) sustentável1. Existem claras analogias políticas entre as questões culturais e ecológicas, pois tanto a cultura como o meio ambiente são bens comuns da humanidade.
De acordo com estes princípios, a Agenda 21 da Cultura2(www.agenda21culture.net) vem complementar a Agenda 21 Local - Carta de Aalborg - (http://www.cidadessustentaveis.info), promovendo uma visão integrada do desenvolvimento, como aliás veem defendendo a UNESCO, a Organização Mundial de Cidades e Governos Locais ou o Fórum Social Mundial.
Como não existe desenvolvimento sustentável sem participação ativa e crítica dos cidadãos, também a construção de uma política cultural local emancipadora deve obrigatoriamente nascer de um debate público democrático, plural e inclusivo. O desenvolvimento cultural apoia-se na multiplicidade dos agentes sociais e os princípios de uma boa governança incluem a transparência informativa e a participação cidadã na conceção das políticas culturais, nos processos de tomada de decisões e na avaliação de programas e projetos (A21C – princípios, 5º).
A motivação para a mudança urgente e necessária na direção de sociedades sustentáveis e indutoras de bem-estar equitativamente distribuído não pode fazer esquecer as circunstâncias atuais da política e da microfísica do poder, a colonização tecnocrática e o controle do espaço público ou a concentração excessiva de poder nas formas de governação pública. Como efetivamente o uso do espaço público (urbanístico e comunicacional) tem sido fortemente condicionado pelo poder político, a este caberá um papel determinante na configuração de uma cidadania ativa ou, pelo contrário, de uma passividade pardacenta, para usar uma expressão cromática do Livro do Desassossego.
E essa é sem dúvida uma visão e uma opção política; a escolha entre uma atitude que promova a vitalidade e a coesão social das comunidades num espaço público relacional – e conflitual-, ou uma postura conservadora que privilegia a predominância de um Estado paternalista. O nível mais grave da segunda opção poderá ter a forma daquilo que Boaventura de Sousa-Santos designa como “Fascismo Societal”, isto é, um regime social e civilizacional que numa das suas formas mais radicais promove a segregação social dos excluídos através de uma cartografia urbana dividida em zonas selvagens e zonas civilizadas.
A ausência de uma dimensão participativa sistemática na gestão estratégica e democrática das cidades tem levado à persistência de um "consenso operacional", o qual é produzido e controlado pelas instâncias de poder (político, mediático ou institucional) favorecendo a reprodução das desigualdades, alimentando a inércia no mundo social, cuja causa e existência aparece aos olhos do mundo como sendo eterna e metafísica (P. Bourdieu), humanamente irresolúvel portanto. Não deixa de ser inquietante que, de acordo com uma investigação coordenada por Manuel Villaverde Cabral, se revele que os portugueses têm muito ou algum receio de exprimir publicamente uma opinião contrária à das autoridades políticas.
Não existem fórmulas mágicas ou saltos quânticos que permitam passar de uma ambiente urbano monocromático, onde a dominação sócio-política é exercida atavicamente pelos mesmos agentes “de sempre”, para a construção imediata ou espontânea da ação coletiva e da inovação social. Nem a implementação burocrática de fóruns participativos com um fim em si, como se de uma moda ou tendência se tratasse, deve ser vista como contributo consistente para o desenvolvimento sustentável.
Iniciar um processo de construção de uma política cultural local requer “planeamento estratégico criativo e participativo”e o uso de metodologias que visem a mudança social e a inclusão da ação coletiva3. Um dos processos mais recentes e tornado públicos foi a elaboração das “Estratégias para a Cultura em Lisboa”4, um documento que regista a metodologia participativa e as fases de diagnóstico, análise e identificação de medidas e projetos. O “Guía para la participación ciudadana en el desarrollo de políticas culturales locales para ciudades europeas”5ou o relatório “Towards an architecture of governance for participatory cultural policy making”6de Colin Mercer,são recursos úteis e pragmáticos, entre outros documentos e casos-de-estudo existentes neste âmbito e em diversas geografias. São igualmente reconhecidos internacionalmente os avanços na investigação em políticas culturais na América Latina (Brasil, Argentina, México, Colômbia,..), na Austrália ou no Canadá. E, para dar um exemplo europeu, refira-se a “Réseau culture 21” (http://reseauculture21.fr/), uma rede francesa independente que visa promover políticas culturais ancoradas nos pressupostos da Agenda 21 da Cultura.
Existem certamente diferenças de contexto e opções específicas, mas, de uma forma geral, a metodologia para desencadear um processo de planeamento estratégico criativo e participativo, segue as seguintes etapas:
Fase 1 – Emergência de uma vontade coletiva de mudança
- Instituição e valorização do “Conselho Municipal de Cultura”7, o qual deve funcionar como uma instituição pública gerida coletivamente pela administração local, pelos agentes culturais e cidadãos interessados, organizados em assembleia e em grupos de trabalho sectoriais;
- Adoção dos princípios e compromissos constitutivos da Agenda 21 da Cultura – os municípios podem aderir formalmente a esta “carta” (ver www.agenda21culture.net)
- É importante nesta fase coligir os documentos estratégicos municipais de cultura já existentes (cartas de património, diagnósticos, planos estratégicos, etc..) e fazer uma síntese dos mesmos.
Fase 2 – Análise da situação e diagnóstico
- Analisar documental das fontes de informação já disponíveis relativas à caracterização demográfica do município;
- Realizar entrevistas a informadores privilegiados: responsáveis políticos, agentes culturais, diretores municipais de cultura, directores de equipamentos culturais, personalidades, artistas, produtores, gestores, …;
- Realizar fóruns sectoriais de consulta;
- Mapeamento do Ecossistema Cultural - recursos culturais do concelho (Património Material e Imaterial, Equipamentos Culturais, Associativismo, Artistas, Artesãos, Indústrias Criativas, Produtores Culturais, Projetos, Festas Populares, Grande Eventos,...)
- Análise das dinâmicas culturais: programações e actividades desenvolvidas por entidades públicas e privadas;
- Elaborar o diagnóstico (SWOT): pontos fortes, pontos fracos, oportunidades e ameaças.
Fase 3 – Estabelecer as prioridades para a intervenção, reflexão estratégica e formulação de medidas e projetos
- Partindo do diagnóstico elaborado na fase anterior, e tendo em consideração o mapeamento de recursos efetuada, é possível promover a reflexão e identificar as áreas de intervenção prioriritárias;
- Definir Eixos e Objetivos Estratégicos de intervenção;
- Criar grupos de trabalho sectoriais/temáticos para brainstorming de elaboração e priorização de Medidas e Projetos.
Fase 4 – Implementação e monitorização
- Definir orçamentos e fontes de financiamento para a implementação das Medidas e Projetos;
- Definir bateria de indicadores de monitorização e avaliação8;
- Definir calendário de execução;
- Desenvolver mecanismos participativos de acompanhamento da execução, monitorização e avaliação de resultados.
Fonte: Estratégias para a Cultura em Lisboa (CML, 2009), p.31.
1 http://www.uncsd2012.org/index.php?page=view&type=1000&nr=506&menu=126
2A Agenda 21 da cultura foi aprovada por cidades e governos locais de todo o mundo comprometidos com os direitos humanos, a diversidade cultural, a sustentabilidade, a democracia participativa e a criação de condições para a paz. Aprovada no dia 8 de maio de 2004, em Barcelona, pelo IV Fórum de Autoridades Locais pela Inclusão Social de Porto Alegre, no marco do primeiro Fórum Universal das Culturas. http://www.agenda21culture.net/index.php?option=com_docman&task=doc_download&gid=9&Itemid=&lang=pt
3 Neste campo, mas com uma abordagem sociológica, as obras de Isabel Carvalho Guerra são um importante contributo: “Participação e acção colectiva” (2006) e “Fundamentos e Processos de Uma Sociologia da Acção”(2002), ambos publicados pela Princípia Editora.
5 http://aragonparticipa.aragon.es/attachments/239_Guia%20participacion%20ciudadana%20politicas%20culturales%20en%20ciudades%20europeas%20%28Pascual%20Ruiz,%20Jordi%29.pdf
6 http://www.policiesforculture.org/administration/upload/ColinMercer_Towards_an_architecture_of_governance_BCN2006.pdf
7 Comissão de Cultura ou Fórum Cultural, são designações igualmente possíveis
8Guía para la evaluación de las políticas culturales locales / Sistema de indicadores para la evaluación de las políticas culturales locales en el marco de la Agenda 21 de la cultura.http://www.femp.es/files/566-762-archivo/Gu%C3%ADa_indicadores%20final.pdf
Comments
este artigo revela, como os
este artigo revela, como os anteriores nesta série, que o Rui Matoso é não só uma pessoa experiente como envolvida e comprometida socialmente. é dessa perspetiva que escreve o que proporciona sempre contentamento quando um certo profissionalismo desvinculado socialmente, produtivista e centrado nos «resultados», invade as mentalidades. contudo discordo do Rui neste aspeto: se não quisermos ser gestionários/técnicos de marketing, não lhes devemos pedir as ferramentas emprestadas - as análises SWOT e semelhantes, em minha opinião, condicionam altamente as análises daí resultantes. Induzem a olhar para a realidade existente como se não houvesse alternativa, e essa é a grande essência do pensamento conservador. considero muito mais profícuo basear as análises, utilizando a tal informação recolhida entre a população e agentes culturais, como o Rui Matoso sugere, na defesa dos direitos culturais para toda a população. podendo parecer demasiado teórico, este ponto de partida abre a perspetiva para as relações de poder dentro deste campo das políticas culturais e orienta a análise e as conclusões dum ponto de vista da ética política. então poder-se-á contrastar a realidade existente com realidades que pretendemos que existam, naqueles locais e naqueles contextos sociais, sem perder alcance prático mas sem esquecer que os direitos devem estar na base das reivindicações e propostas.
Paula Sequeiros,agradeço
Paula Sequeiros,agradeço muito o comentário e o elogio, percebo e partilho da sua inquietação quanto ao usos alienantes das ferramentas de marketing. Nesta série de artigos pretendi posicionar-me na perspectiva do autarca (ou potencial autarca) de modo a sugerir a introdução de alternativas às propostas de politica cultural usuais no sistema, começando por algumas ideias/noções até a um nível mais pragmático que é o caso deste 4º artigo da série. Na parte final do artigo esbocei possíveis etapas para o desenvolvimento de um processo participado de criação de um (ou mais) "plano estratégico" que vise implementar programas ou projectos no âmbito da política cultural local. Neste contexto é obrigatório ter uma fase inicial de diagnóstico,do qual deve surgir um documento público com uma grelha analitica de factores favoráveis e desfavoráveis aos programas/projectos, isto para que haja a capacidade de perceber se existem ou não recursos e estratégias para os implementar. O diagnóstico chamado SWOT não é uma ferramenta específica do MKT, é igualmente usado em projectos de intervenção social...ainda assim e por pudor :) prefiro o acrónimo SWOT ao aportuguesado FODA (Forças-Oportunidades-Debilidades-Ameças).
Se no fundo o que nos interessa é promover a mudança social, no sentido em que a Cultura - quer no seu aspecto mais vasto e antropológico, quer no mais sectorial (artes, letras,...) - é uma fonte de capacitação crítica e criativa dos cidadãos, e que a função de governança deva ser a de sustentar as condições e apoiar a produção cultural dos individuos ou dos colectivos, torna-se necessário fazer uso várias perspectivas, a visão política da democracia participativa e directa com pluralismo e diversidade cultural e também a visão de gestor do bem comum público, para que as condições necessárias ao desenvolvimento cultural forneça a maior liberdade de actuação possível aos agentes/actores, a existência de recursos, de meios, etc..
Um ex:Uma das prioridades em qualquer cidade contemporânea julgo que seja a de existir uma entidade pública local (gabinete/agência/...) com competências e meios para apoiar da forma mais concreta e útil possível os diversos projectos e ideias dos seus habitantes...Mas como fazê-lo sem a tal função de diagnóstico prévio e permanente? Como detectar oportunidades de financiamento ? Ameaças, etc.. Aqui tem de haver de facto "gestão cultural" e gestão em geral...
Acho interessante, e defendo (como qualquer bloquista ou pessoa de esquerda), a Paula referir que os direitos culturais devem estar na base das reivindicações das populações. Mas para que a reclamação desse direito seja respondida com eficácia e justiça, do lado da administração local há o DEVER de responder positivamente a esses direitos...e para que tal aconteça na prática concreta de cada território é preciso que surjam mudanças políticas e de mentalidades ao nível da administração local...para que se deixe de alimentar os seus próprios vícios e se vire para os direitos dos cidadãos.
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