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No Brasil, nuvem de bombas cobre o céu da cidade de São Paulo

Quarta manifestação contra o aumento da tarifa do transporte público, reajustada para 3,20 reais (aproximadamente 1,12 euros), reuniu 15 mil pessoas em frente ao Teatro Municipal, na região central da capital paulista. Com um saldo de mais de 250 detidos, a escalada de repressão chegou aos grandes média sob a forma de balas de borracha contra os seus jornalistas. Apesar das cenas de guerra, o governo Estadual e o prefeito da cidade não cedem: a tarifa e a “ordem” serão mantidas. Por Xenya Bucchioni e Tulio Bucchioni, de São Paulo.
Até o momento, o saldo é de mais de 250 presos, entre eles cerca de dez jornalistas. Foto via Tumblr

Eram cinco horas da tarde. Trabalhadores, estudantes, idosos e famílias ganhavam, pouco a pouco, as ruas, exercendo o direito de manifestar livremente as suas opiniões em um ato contra o aumento da tarifa do transporte público de São Paulo. Juntos, somavam 15 mil pessoas – algo raro para um país pouco habituado às ruas, legado de seus vinte e um anos de ditadura civil-militar. Deslegitimados pelos grandes média desde o começo das mobilizações, sob a alcunha de “baderneiros”1 e “vândalos”, os manifestantes gritaram em coro pela não-violência e, mesmo assim, receberam, na noite de quinta-feira, 13 de junho, um tratamento exemplar: à base de bombas de gás lacrimogéneo, balas de borracha e muito cassetete – espetáculo promovido pela Polícia Militar e pela Rota, polícia especial subordinada à PM. O resultado de tal atuação contabiliza até o momento um saldo de mais de 250 presos, entre eles cerca de dez jornalistas.

Algumas horas antes, no início da manifestação, o major Lidio Costa Junior, do Policiamento de Trânsito da PM, já havia confessado que a situação tinha saído do controlo e advertiu: “Não nos responsabilizamos mais pelo que vai acontecer”. As palavras de Lidio tornaram-se realidade antes mesmo da concentração tomar fôlego, quando a polícia militar fazia revistas em jovens e os detinham na sequência. O motivo? Porte “ilegal” de vinagre – sim, no Brasil, andar com vinagre, agora, pode dar cadeia. Nem mesmo os jornalistas saíram imunes. Piero Locatelli, repórter da revista Carta Capital teve o seu “artefacto” confiscado e seguiu para a prisão (ler mais). Há relatos de jovens presos por formação de quadrilha (crime inafiançável), fichados em presídios da capital, onde, após a nefasta noite de quinta, passam a ter um número de matrícula no cadastro de criminosos – sem sequer terem sido submetidos a qualquer julgamento (ler mais). Além disso, a criminalização do movimento contra o aumento repercute, também, nos bolsos: a fiança para os presos na manifestação é de inacreditáveis 20 mil reais – valor que, em uma rápida pesquisa na Internet, demonstra-se incompatível com as fianças cobradas em atropelamentos culposos ou em casos de porte de arma ilegal no Brasil, entre outros exemplos.

Enraízado na história do país, o autoritarismo presenciado na capital paulista não se limita à ação policial e é, sobretudo, endossado pelas autoridades estaduais e municipais e pela grande imprensa, sendo também compartilhado por amplos setores da classe média. Um dia antes do ocorrido, no dia 12 de junho, o governador de São Paulo, Geraldo Alckmin, do partido de oposição (PSDB), elogiara o trabalho da polícia, enquanto o prefeito Fernando Haddad, do partido do governo (PT), optara por declarações de “não diálogo em situações de violência”. Apesar de supostamente atuarem em campos políticos opostos, ambos viram os seus discursos convergirem para um ponto comum: a defesa da manutenção da tarifa e da ordem contra as manifestações e o fecho de vias públicas.

Os títulos dos editoriais dos dois maiores jornais da capital paulista, publicados no dia da manifestação, eram claros: “Retomar a Paulista” (Folha de S. Paulo) e “Chegou a hora do basta” (O Estado de São Paulo).O repúdio à postura da grande imprensa, de incentivo tácito à ação da polícia na repressão aos manifestantes, foi sentido nas muitas mensagens que circularam pelo Facebook ao longo do dia. Entretanto, foi apenas depois do primeiro estalo das balas de borracha nos corpos de jornalistas destes dois veículos que o horror mostrou a sua verdadeira face em uma capa de jornal. A partir daí, não havia mais como manipular a opinião pública.

Vídeos e imagens capturadas por manifestantes e pessoas comuns invadiram as redes e a notícia das muitas agressões contra os jornalistas vieram a público. Uma coletânea significativa dessa produção pode ser vista no Tumblr Feridos no Protesto em São Paulo. O caso mais emblemático, com repercussão internacional, foi o da jornalista Giuliana Vallone, da Folha de S. Paulo, atingida no olho direito por uma bala de borracha disparada por um polícia da Rota enquanto a jornalista prestava socorro a uma mulher durante as barricadas (leia mais).

Motivos económicos: inflação, tarifa real e tarifa aplicada

No Brasil, o transporte público coletivo urbano atende maioritariamente às pessoas de média e baixa renda, o que torna o valor da tarifa desses serviços um instrumento importante na formulação de políticas de inclusão social e também na gestão da mobilidade urbana. De acordo com a inflação, com dados básicos de correção pelo IPCA (IBGE), a passagem de ônibus que custava R$ 0,50 em 1994, deveria custar R$ 2,16 em maio de 2013. De lá para cá, a alta da inflação foi de 332,22%. Já o valor do Metro, seguindo o mesmo índice, deveria ser de R$ 2,59. Ambos custavam, em 2013, R$ 3,00 e passaram a custar, com o reajuste atual, R$ 3,20 (aproximadamente 1,12 euros - 5 vezes maior do que a tarifa da vizinha Buenos Aires e 4 vezes maior que na Cidade do México).

Segundo dados do IPEA (Instituto de Pesquisa Económica Aplicada), em relatório publicado em 2011 (vide anexo), entre 1995 e 2008 as tarifas dos sistemas de ônibus urbanos nas nove maiores cidades brasileiras – Belo Horizonte, Curitiba, Fortaleza, Goiânia, Porto Alegre, Recife, Rio de Janeiro, Salvador e São Paulo – tiveram um aumento de cerca de 60% acima da inflação medida pelo Índice Nacional de Preços ao Consumidor (INPC). O estudo ainda aponta o sucessivo aumento na tarifa do transporte público como um dos elementos que permitem explicar a perda da capacidade de compra do salário mínimo (SM), observada entre 1995 e 2003. E conclui: a retomada do poder de compra do salário mínimo, ocorrida desde 2003, por si só, não é capaz de manter um aumento sustentado do volume de passageiros capazes de arcar com os custos do sistema de transporte urbano. Em outras palavras, parte da população brasileira permanece excluída do uso do transporte público coletivo no Brasil.
Frente a esse cenário, a mobilização segue. O próximo protesto, marcado para a segunda-feira, dia 17, já conta com mais de 70 mil confirmações pelo Facebook - 40 mil a mais do que as obtidas na última mobilização.

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