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Férias

Nestes dias em que o sol, apesar de envergonhado, ameaça despontar, reivindiquemos as férias e as condições que as permitem.

Peguemos em três episódios que pontuaram a semana política: a multa de 1300 euros aplicada pelo Tribunal de Elvas ao cidadão que mandou o Presidente da República ir trabalhar; o recurso de Gaspar ao clima como explicação para os maus resultados económicos; a notícia de que pagamento aos funcionários públicos dos subsídios de férias e Natal poderá não estar em risco. Esta mistura entre a sonora afirmação da ética do trabalho, a atenção política às variações meteorológicas e o ataque aos suplementos salariais conquistados pelos trabalhadores fez-me pensar no óbvio: férias.

É ainda forte a memória de um tempo onde o direito a férias pagas não existia. A maioria da população trabalhava sem pausas retemperadoras e a grande maioria não dispunha de qualquer complemento económico que permitisse usufruir delas. Milhões de portugueses viviam e trabalhavam sem a perspetiva de uma saída momentânea do seu lugar. Sem desfrutarem de um afastamento sazonal da monotonia dos dias e da dureza do trabalho. Era uma sociedade mais pobre, mais fechada, menos cosmopolita.

O direito a férias pagas surgiu pela primeira vez em França em 1936, durante o governo da Frente Popular, e viria a estender-se a mais países ao longo dos anos seguintes. Em 1948, o artigo 24 da Declaração Universal dos Direitos Humanos estipulava que “toda a pessoa tem direito ao repouso e aos lazeres e, especialmente, a uma limitação razoável da duração do trabalho e a férias periódicas pagas”. Em Portugal, foi só na sequência do 25 de Abril de 1974 que esse direito se generalizou, constituindo um acrescento monetário aos crónicos baixos salários e proporcionando a muitos condições para uma temporada fora de casa, em regra com o mar por perto.

Esta conquista, tão intensa quanto recente, está hoje posta em causa. Em primeiro lugar, pela generalização dos recibos verdes, forma trapaceira de destruir os direitos do trabalho, entre os quais o direito a férias pagas e a horários laborais minimamente regulados. Em segundo lugar, pelo desemprego e pelo processo de empobrecimento em curso que nos está a ser induzido como uma espécie de cura assassina. Em terceiro lugar, pelo ataque direto que, nos últimos tempos, o governo dirigiu a essas componentes do salário.

Por outro lado, quantas vezes ouvimos dizer - contra os dados existentes e até contra a nossa própria experiência quotidiana - que a “culpa” da crise era da generalidade dos portugueses, que andaram a esbanjar tudo em férias em longínquos destinos paradisíacos, endividando-se endividando-nos? É precisamente nestas coisas que vemos a persistência ainda de uma mentalidade salazarista, que estabelece “a cada um o seu lugar”: mulheres em casa, prendadas e respeitadoras; homens na rua, mandando na casa; ricos em cima, poderosos e magnânimos; pobres em baixo, calados e agradecidos. Então agora anda tudo na boa vida?

Não anda, mas devia. Reivindiquemos, pois, a boa vida. A vida boa que conjuga trabalho e lazer. Que nos permite dispor do tempo, que é nosso, para viver vidas para além do trabalho; e que reivindica o trabalho para poder viver o tempo para além dele. Nestes dias em que o sol, apesar de envergonhado, ameaça despontar, reivindiquemos as férias e as condições que as permitem. Sem elas, não mantemos a sanidade mental nem revigoramos os corpos, não gozamos o Verão nem o cheiro a maresia, não pomos leituras em dia nem nos permitimos “estimular o consumo interno”, não aprendemos a estar melhor com quem gostamos nem a olhar o céu de maneira diferente. Se nos roubarem isso, ficaremos com muito pouco.

Sobre o/a autor(a)

Historiador, doutorado em História, investigador do CES/UC.
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