You are here

Queres ser minha mãe?

Os argumentos de quem contesta a co-adoção e a adoção por casais do mesmo sexo, não podiam estar mais longe da defesa dos direitos das crianças e mais perto de estereótipos bacocos e de preconceitos ignominiosos.

Tinha decidido não escrever sobre este assunto porque o João Mineiro já disse neste espaço aquilo que eu queria ter dito sobre a recente aprovação na Assembleia da República do projeto de co-adoção para casais do mesmo sexo.

Mas depois das barbaridades que ouvi sobre o assunto no programa Prós e Contras, não posso, em consciência e enquanto ativista dos direitos das crianças, manter-me calada.

Os argumentos de quem contesta a co-adoção e a adoção por casais do mesmo sexo, não podiam estar mais longe da defesa dos direitos das crianças e mais perto de estereótipos bacocos e de preconceitos ignominiosos do que aquilo que estiveram. Denotam com uma tão grande clareza, uma tão profunda homofobia, que nem as mais veementes tentativas de Marinho e Pinto se afirmar como um defensor dos direitos dos homossexuais conseguiram esconder. Denotam igualmente uma conceção estereotipada de família, completamente ultrapassada e desligada da realidade, própria de quem se esqueceu de levantar os olhos do seu umbigo e de olhar à sua volta e de quem perdeu a magia que é a constante mutação das sociedades e das suas estruturas. Mas mais do que tudo isto, estes argumentos denotam um profundo desconhecimento da realidade vivida por milhares de crianças que aguardam por uma família, ou pior, um profundo desprezo pela vida de cada uma delas. Não conseguem disfarçar que aquilo que molda os seus valores e princípios não é de todo, o superior interesse da criança, mas as conceções pessoais sobre o que deve ser uma família e os preconceitos sobre as famílias diferentes, as homossexuais, as singulares e até as adotivas.

Quero antes de mais deixar claro que defendo não apenas a co-adoção mas igualmente a adoção plena por casais do mesmo sexo. E salientar que repudio o argumento, demasiadas vezes usado, do mal menor, como se adoção por casais do mesmo sexo só fosse aceitável perante a alternativa da institucionalização. “Mais vale estar numa família homossexual do que numa instituição”. Trata-se de um argumento altamente discriminatório que hierarquiza famílias e entende a família homossexual como inferior e inadequada, argumento aliás igualmente usado para justificar a escolha de uma família adotiva. O projeto de vida de adoção é invariavelmente apresentado como um mal menor para a criança que não pode crescer no seio da sua família biológica.

Mas quero centrar-me especificamente nalguns argumentos que foram apresentados no debate referido pelos oponentes da co-adopção.

O argumento autocentrado afirma que a criança tem direito a ter um pai e uma mãe. Que esse é o direito de qualquer criança. Ora aquilo a que na realidade a criança tem direito é a uma família. Quanto muito é referido o direito a 'pais' sem que seja especificada a orientação sexual destes nem o seu número. O princípio VI da Declaração Universal dos Direitos da Criança, confere à criança “o direito ao amor e à compreensão por parte dos pais e da sociedade.” A alínea g) do artigo 4º – princípios orientadores da intervenção – da Lei de Proteção de Crianças e Jovens em Perigo estipula que “na promoção de direitos e na proteção da criança e do jovem deve ser dada prevalência às medidas que os integrem na sua família ou que promovam a sua adoção”. A ideia de que esta família tenha obrigatoriamente de ser constituída por uma mulher e um homem revelam bem o preconceito que enforma o argumento.

O argumento naturalista baseia-se na ideia de que uma criança, para se desenvolver de forma saudável e harmoniosa, terá de ser educada obrigatoriamente por um homem e uma mulher. Ao que parece “para a construção da identidade de uma criança é importante que ela tenha uma noção da sua origem e toda a criança tem origem na união entre um homem e uma mulher.” Ora, por esta ordem de ideias a adoção singular não poderia ser permitida nem prática corrente do Direito Português. Porque faltaria sempre a esta criança a outra referência - masculina ou feminina. Poderíamos mesmo afirmar que as crianças inseridas em famílias monoparentais, adotivas ou biológicas, deveriam ser retiradas e colocadas em famílias «como deve ser». Com um pai e uma mãe. Fica a certeza da confusão existente em torno da construção de identidade de um indivíduo e do papel que os géneros possam ter na formação dessa identidade. Por um lado, não se pode afirmar sem cair no ridículo, que a uma criança com dois pais ou duas mães ou a uma criança com apenas um pai ou uma mãe seja vedada a interação com tantas outras figuras, masculinas ou femininas, ao longo da vida e nos diversos e inúmeros espaços da vida familiar e social. Por outro lado, não se pode garantir que crescer numa família com um pai e uma mãe confira à criança uma noção da sua origem. Eu por exemplo, cresci numa família com dois elementos heterossexuais e até uma idade vergonhosamente avançada fui convencida de que tinha vindo de Paris no bico de uma cegonha. Descobri depois que pelo menos metade da história era verdadeira.

O argumento idiota foi o que apresentou como um problema grave a decisão sobre “a quem entregar a criança em caso de divórcio do casal homossexual”. Como refutar argumentos que de tão idiotas nos levam a duvidar da seriedade do debate ou até de quem os profere? Não estará no gozo? - foi a minha primeira reação. A única resposta possível foi a que lhe foi apresentada por diversas vezes no decorrer do debate e que o bastonário da ordem dos advogados pareceu não ouvir, fosse por incapacidade física ou outra. A decisão é exatamente a mesma que terá de ser tomada em caso de divórcio de um casal heterossexual. Sem tirar nem pôr. Esse nem sequer é um argumento valido. É apenas desesperado.

O argumento que mais me irritou, foi o que invocava o Superior Interesse da Criança. Porque os dois senhores que estavam sentados na mesa daquele debate, deviam saber, acima de qualquer outra pessoa, que o superior interesse da criança é um conceito abstrato, variável e adaptável a cada situação, a cada história, a cada criança. Não pode ser definido e concretizado consoante a vontade de cada um e baseado em valores e crenças pessoais. Não será certamente o Dr. Marinho e Pinto que decretará que o superior interesse da criança é o de ser criada e educada por um casal heterossexual.

Durante um estudo sobre os processos de tomada de decisão nos casos de proteção de crianças e jovens em perigo foi-me sucessivamente explicado, por legisladores, académicos, especialistas, técnicos e magistrados que o conceito de superior interesse da criança não pode ser concretamente definido e balizado porque o superior interesse de uma criança pode não ser o mesmo de outra e pode até variar no tempo para a mesma criança. E se no início refutei esta conceção e tentei defender uma definição de superior interesse da criança, baseada no fundo, nos valores que defendia, rapidamente compreendi que o interesse de uma criança depende da sua história de vida, das suas características e personalidade, das suas expectativas e necessidades, dos seus sonhos e dos seus medos, depende no fundo, de cada criança. Existem crianças cujo superior interesse pode passar por uma adoção singular ou por uma adoção com irmãos ou por uma adoção mais tardia. Crianças cuja história de vida não recomenda por exemplo a adoção por um homem ou por uma mulher. Mas essa avaliação tem de ser feita por quem verdadeiramente conhece a criança, por técnicos responsáveis e habilitados e a decisão deve ser tomada nos órgãos competentes e baseada na informação acerca da criança e da sua história e na informação que a própria criança dá de si. O superior interesse da criança não pode ser definido por decreto porque todas são diferentes e todas têm necessidades diferentes nas suas diversas fases de vida.

Por último, quem conhecer verdadeiramente a realidade das crianças institucionalizadas e sobretudo quem as souber ouvir, rapidamente percebe que são despojadas dos preconceitos em que os adultos se baseiam para tomar decisões em seu nome. Quem como eu, tiver percorrido as instituições de acolhimento deste país, foi certamente confrontado, muitas vezes ainda à soleira da porta, com a mesma pergunta formulada em jeito de desafio, ou de forma envergonhada, mas sempre sincera e sobretudo esperançosa. Sem perguntarem se sou casada ou não, se partilho a minha vida com um homem ou uma mulher, qual a minha religião, cor política ou clube de futebol. Simplesmente, “queres ser minha mãe?”

Sobre o/a autor(a)

Feminista e ativista. Socióloga.
Comentários (6)