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O que fizemos quando a cidade ardia?

Cada um e cada uma é responsável pelo seu voto ou pela sua abstenção, pela atitude tomada ou pela falta dela, pelo gesto de sair à rua ou de permanecer no sofá. Os tempos a isso mesmo convocam. Ignorar o presente é tomar (um mau) partido pelo futuro.

“A crise é uma oportunidade”, diz o ditado. Mas a grande maioria das vezes é apenas uma ameaça. Uma ameaça a quem não possui ferramentas para ultrapassar as vulnerabilidades do quotidiano. Uma ameaça a quem vive do seu trabalho e o vê escassear. E uma ameaça ao modo como fomos construindo – tardiamente e de forma lacunar – um modelo de Estado que foi permitindo suprir algumas carências oriundas de uma sociedade profundamente desigual. Vivemos tempos ameaçadores, em que o próprio espectro do futuro surge como indesejável. Por isso mesmo, tão importante como a análise do presente é a imaginação do possível.

A primeira ameaça à nossa vida individual e coletiva provem da austeridade. O processo de empobrecimento induzido em que estamos submersos está a piorar o dia-a-dia da imensa maioria. A taxa de desemprego regista máximos históricos e o desemprego jovem roça os 50%. Neste cenário, a família-providência reganha importância: netos, filhos e avós são obrigados a reforçar laços de dependência económica, precisamente no momento em que os pensionistas são um dos alvos preferenciais dos cortes promovidos pelo governo. Ao mesmo tempo, a segurança social, a saúde e a educação públicas são atacadas abertamente, através de uma retórica que busca “emagrecer” o Estado e manter inquestionável a dívida e a sua necessária renegociação. A resposta à austeridade só pode passar por um aprofundamento da democracia, por uma revitalização do Estado social e por uma alternativa de esquerda seriamente apostada em combater as desigualdades e socializar a riqueza.

A segunda ameaça vem de um populismo que atribui culpas da situação que vivemos aos “políticos”. Estes são vistos como todos iguais, todos corruptos e todos recheados de mordomias autoimpostas. Essa leitura dos “políticos”, como uma espécie de “classe” à parte, esquece o lugar no qual injustiça e corrupção efetivamente se encontram: a esquina onde uma oligarquia económico-financeira perene namora com sectores partidários que têm governado o país. Do que precisamos, pelo contrário, é de mais políticos e de mais política. Se esta é, por natureza, o cuidado com os assuntos da polis, tornar-nos políticos – ou seja, participar nos processos democráticos – é condição necessária para podemos influir no presente. E a participação, convém frisá-lo, não se restringe à democracia representativa: faz-se também nos movimentos sociais, em fóruns de debate, nos protestos de rua e nos gestos mais ou menos arrojados – das grandoladas ao recém inaugurado «direito de rirsistência» - que põem a nu quem manda.

A terceira ameaça que assombra os tempos que correm reside na revitalização de um discurso nacionalista que divide a humanidade entre um “nós” e um “eles”. Este desenho enquadra os primeiros numa nação que – em lugar de ser pensada como uma construção política com contradições internas e inserida em dinâmicas que frequentemente a transcendem – é vista como algo natural e orgânico. A História já exemplificou como o nacionalismo resulta em refúgio conservador quando os tempos se tornam perturbantes. A este nacionalismo difuso torna-se útil contrapor um espírito cosmopolita que seja aberto à diferença e se ancore na afirmação ética da universalidade.

A quarta, última e porventura mais perigosa ameaça – porque abre caminho a todas as outras – vem do desinteresse. Ou seja, a instalação de uma certa consciência de que cada voz individual é tão ínfima que resulta inaudível. “Vão sem mim que eu vou lá ter”, cantavam os Deolinda, expressando este sentimento de cómoda desistência. É frequente os partidos e movimentos à esquerda ficarem-se pela interpretação dessa atitude e das razões políticas, sociais ou históricas que a sustentam. Isto é importante porque capacita uma intervenção contra-hegemónica que pretende disputar os espíritos à modorra. Mas é necessário complementar esta visão com uma outra, que coloca a tónica na responsabilidade. Cada um e cada uma é responsável pelo seu voto ou pela sua abstenção, pela atitude tomada ou pela falta dela, pelo gesto de sair à rua ou de permanecer no sofá. Os tempos a isso mesmo convocam. Ignorar o presente é tomar (um mau) partido pelo futuro.

O que diremos quando nos perguntarem: e tu, o que fizeste quando a cidade ardia?

Sobre o/a autor(a)

Historiador, doutorado em História, investigador do CES/UC.
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