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Os Passos atrás

Diz-nos o ditado que é por vezes necessário um passo atrás para dar depois dois em frente. Numa altura de demasiados passos atrás paira a nebulosa dúvida se ainda é possível dar algum em frente.

Sendo o dito popular intemporal, fica a certeza de que os passos atrás usados para ganhar balanço, foram idealizados numa altura em que o caminho em diante não era tão íngreme. Demasiados passos em sentido oposto têm desgastado as pernas e a fé dos caminhantes, tornando os passos em frente uma utopia outrora prometida.

Fosse o dito popular uma emanação do pensamento troikista que assombra o País, pensaríamos que serve esta redução dos salários ao nível do insulto para mais tarde ser remunerados principescamente; que serve esta destruição do sistema nacional de saúde, para depois não haver espirro que não seja socorrido quase de forma imediata; que o extermínio do emprego estável e digno, dará lugar à abundância de oferta, com regalias incontáveis e esforço mínimo; que a delapidação de recursos da escola pública servirá para fomentar uma escola de oportunidades para todos, com um professor para cada aluno.

Estes passos atrás, servem no entanto, apenas para nos distrair, sob o prenúncio de passos em diante que nunca surgem. Servem apenas para ganhar um avanço, e quando o percebermos será demasiado para o encurtar. Na corrida que é a luta por direitos e dignidade, pela simples aspiração de querer viver e não apenas sobreviver, estamos a ficar irremediavelmente para trás.

Não desconfiamos quando vemos alguns darem estes passos atrás, não suspeitamos quando vemos desemprego de um ou outro, quando ouvimos relatos de dificuldades em que os filhos vão à escola ou se alimentem condignamente, quando nos chega ao conhecimento que escasseia dinheiro para tratamentos essenciais à qualidade de vida e recuperação de doença. Mas os passos atrás de uns, os infortunados pioneiros, são em breve os passos atrás de todos, e o atraso já se torna difícil de superar.

Os passos atrás que damos hoje, não são mais do que os passos em frente de alguns que marcam firme a sua pegada no sucesso pelo peso que lhes conferem os bolsos cheios com o lucro da desgraça alheia.

Fica o exemplo de uma corrida que parece já impossível. Há alguns anos, e contrariando os estudos relativos à qualidade no trabalho, os enfermeiros, escorraçados da função pública, foram presenteados com contratos de 40h semanais e uma redução do pagamento das horas de trabalho noturno e diurno aos fins-de-semana e feriados. Sendo para alguns apenas, nada se reivindicou, nada mudou, e impávidos se assistiu ao recuo. Hoje os passos são impostos a todos, e o recuo em declive acentuado promete ser difícil de parar, quanto mais retomar a marcha em diante.

A inércia perante as dificuldades de alguns é o peso que balança ainda mais o declínio de todos; não há passo atrás, não contrariado, que não traga outros mais e de forma mais irremediável. Percebem-no hoje os enfermeiros e enfermeiras: não dando a mão às exceções permitiram que se tornassem a regra, e o caminho trilhado atrás, por uns, é a penitência a cumprir por todos.

Importa caminhar firmemente em frente, perante as dificuldades, quiçá dar um passo ao lado. Permitir passos atrás não é ganhar balanço, é permitir avanço numa corrida já demasiado desigual. Em mente deve estar sempre presente que a velocidade a que avançamos ou recuamos será sempre medida por aqueles que coxeiam, por aqueles que fraquejam; os seus passos atrás de hoje, de apenas um que seja, serão os nossos amanhã.

O Passos obriga-nos a passos atrás. Promete um, escondendo que quem anda para trás tropeça, e atrás de nós esconde-se a traiçoeira rasteira da austeridade. Mais do que um passo, fará com que tombemos e ver a cada dia aumentar a distância para os passos que devemos dar em frente, para os passos que merecemos numa vida que tenha a qualidade como direito e não como raro privilégio.

Sobre o/a autor(a)

Enfermeiro. Cabeça de lista do Bloco de Esquerda pelo círculo Europa nas eleições legislativas de 2019
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