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Coreias: Riscos de uma escalada

Nem Pyongyang, nem Seul, nem Washington, nem Pequim (o único aliado, cada vez mais distante, da Coreia do Norte) têm interesse numa deflagração. Irão as partes chegar a conversações que permitam congelar as tensões? Artigo de Martine Bulard, publicado nos blogues do Diplo com o título “Doutores Estranho Amor à coreana”.
“As demonstrações de força, diárias e permanentes”, constata John Delury, investigador americano da universidade Yonsei em Seul, “não vêm só do Norte, mas também dos Estados Unidos e da Coreia do Sul...” Um jogo extremamente perigoso.

Não é a primeira vez - nem será certamente a última – que a República Democrática da Coreia (RPDC) fala alto, mostra músculos e ameaça os vizinhos do pior. No entanto, as diatribes raramente duram muito tempo. Desde o terceiro ensaio nuclear subterrâneo de fevereiro de 2013, a escalada parece não ter limite: rejeição do armistício de 1953, que parou a guerra entre as partes da península, e de todos os acordos assinados desde então; ameaças de bombardeamento da base americana de Guam, dos próprios Estados Unidos e do irmão inimigo sul-coreano; ameaça de encerramento da zona industrial intercoreana de Kaesong e retirada dos seus 53.000 trabalhadores norte-coreanos; instalação de dois mísseis de médio alcance na costa leste... Numerosos peritos falam de um eventual disparo até 15 de abril, data do aniversário de nascimento do fundador da RDPC Kim Il-sung, avô do atual líder Kim Jong-un.

Do lado americano, as provocações respondem às provocações. No início de março, as manobras militares, apoiadas pelas forças sul-coreanas, mobilizaram mais de 40.000 soldados no limite das águas territoriais norte-coreanas – sendo a zona de divisão entre o Norte o Sul sempre contestada por Pyongyang. Lembre-se que 28.000 soldados americanos estão estacionados permanentemente na República da Coreia (Republic of Korea — ROK), que bombardeiros B-52 e B-2 (furtivos) sobrevoaram território sul-coreano em múltiplas demonstrações, que dois destroyersestão já junto à costa da ROK e que drones foram também postos em ação, enquanto que um sistema de mísseis anti-balísticos THAAD está para ser instalado na ilha de Guam.

Esta ação das forças americanas é destinada a marcar posição – para a Coreia do Norte certamente, mas também para o conjunto do Pacífico e em particular para Pequim. Faz parte da famosa “viragem asiática” anunciada por Barack Obma no seu discurso sobre o Estado da União em janeiro passado. Apoiando assim, em qualquer caso, a nova presidente da Coreia do Sul, Park Geun-hye, filha do antigo ditador Park Cheun-hee, que pediu aos militares para “estarem prontos para uma resposta severa e imediata, sem quaisquer outras considerações políticas”.

“As demonstrações de força, diárias e permanentes”, constata John Delury, investigador americano da universidade Yonsei em Seul, “não vêm só do Norte, mas também dos Estados Unidos e da Coreia do Sul, que, com os seus exercícios militares anuais captaram a atenção mundial; a península já não está associada ao “estilo Gangnam”1 mas às armas nucleares e aos bombardeiros furtivos.” Um jogo extremamente perigoso.

Certamente, nem Pyongyang, nem Seul, nem Washington, nem Pequim (o único aliado, cada vez mais distante, da RDPC) têm interesse numa deflagração. Afinal, mais grave que os excessos verbais, o bombardeamento, em novembro de 2010, da ilha Yeonpyeong que fez quatro mortos sul-coreanos, poderia ter servido de pretexto para uma escalada militar. Todas as partes acabaram então por reencontrar a via das negociações – as conversações a seis (as duas Coreias, China, Estados Unidos, Japão, Rússia) permitiram congelar as tensões. Irá acontecer o mesmo nas próximas semanas? Pyongyang aproveitará o anúncio do congelamento dos ensaios nucleares americanos de mísseis balísticos intercontinentais com ogivas nucleares (Minuteman III), para ganhar vantagem nas negociações? Não há nenhuma certeza disso.

Excetuando o presidente americano Barack Obama e o presidente russo Vladimir Putin, todos os dirigentes da região acabam de assumir a sua função – o que não quer dizer, longe disso, que sejam inexperientes. Abe Shinzo tornou-se primeiro-ministro do Japão em setembro de 2012 e deve enfrentar eleições em julho próximo; o presidente chinês Xi Jinping tomou posse oficialmente em março de 2013; a presidente sul-coreana Park, em fim de fevereiro. Qual é verdadeiramente a sua política em relação a este turbulento vizinho? Muito cedo para responder. Como é difícil identificar as escolhas de Kim, que substituiu o seu pai em dezembro de 2011.

Um meio de proteção e força de negociação

Retomando o exemplo paterno, o dirigente norte-coreano está convencido que a chantagem nuclear pode ser eficaz: o Iraque, sem este tipo de armamento, foi invadido pelas tropas americanas e o Irão não, apesar de ser suspeito de as possuir. Sem falar das ajudas internacionais (alimentares, petrolíferas...) obtidas aquando das negociações a seis depois das bravatas e das chantagens.

Kim quer por conseguinte fazer do nuclear um meio de proteção e uma força para a negociação, especialmente os Estados Unidos. É com este objetivo à cabeça, que ele recebeu com grande pompa a estrela do basquetebol americano Dennis Rodman – à maneira de Glenn Gowan, o jogador de pingue-pongue americano que visitou a China em 1971 o que constituiu o prelúdio do encontro entre Richard Nixon e Mao Zedong alguns meses mais tarde. Na época, falou-se de “diplomacia do pingue-pongue”. Rodman divulgou por todo o lado o que o presidente norte-coreano desejava “falar em direto a Barack Obama (“Kim Jong-un wants Obama to call him” – Rodman », NK.news.org, 4 de março de 2013). A história irá repetir-se e dar à luz uma “diplomacia do basquetebol”? Os acontecimentos não estão nessa perspetiva.

Obviamente, a atitude de Kim Jong-un visa igualmente a sua própria população. Desde a sua chegada ao poder, vários militares de alta patente (entre os quais o vice-marechal Kim Jong Gak) foram “chamados a outras funções”, como foi dito. A rotação das funções é oficialmente a regra, mas Kim e o seu círculo procuram retomar o controlo sobre um exército que se tornou omnipotente. Não se pode desprezar a ideia que a retórica guerreira e as mensagens de firmeza em relação a Seul e Washington servem também para tranquilizar o exército, inquieto com as mudanças.

Um primeiro-ministro reformador

Mas, como nota a agência de notícias NK News, são as questões do desenvolvimento económico e da melhoria das condições de vida que aparecem no centro das preocupações: “Os jornais ocidentais falam de guerra, os da Coreia do Norte falam de economia”, sublinha a agência. De facto, a assembleia popular suprema da RDPC, que esteve reunida a 1 de abril, demitiu vários ministros. O primeiro-ministro foi substituído por Pak Pong-ju, que não é um desconhecido para os norte-coreanos. Ele já ocupou essas funções de 2003 a 2006, e lançou então reformas económicas, dando mais autonomia às empresas e facilitando o comércio, antes de ser suspenso e depois demitido. Diz-se que é partidário de reformas à chinesa. O seu regresso parece indicar uma vontade de impulsionar mudanças. Para já, Pyongyang conhece uma certa efervescência, longe das caricaturas frequentemente apontadas2. O poder quer acelerar o movimento para atingir uma nova etapa. Pode-se conciliar uma política agressiva para com os vizinhos (República da Coreia, Japão) e uma estratégia de afrontamento com os Estados Unidos, rejeitando as advertências do seu único “aliado”, a China?

Em qualquer caso, Pequim começa a irritar-se. “Nenhum país tem o direito de precipitar uma região ou mesmo o mundo no caos”, martelou o presidente chinês no Fórum de Boao3. É uma “mensagem muito clara destinada à Coreia do Norte”, precisou o ministro dos negócios estrangeiros Wang Yi. Pela primeira vez, a China aceitou a resolução do Conselho de Segurança das Nações Unidas condenando o terceiro ensaio nuclear e pedindo um reforço das sanções – o que não é costume para a China, que normalmente se opõe por princípio às sanções. Pequim não se apressou a aplicar a resolução, apesar de ter sido dito que os abastecimentos de petróleo escassearam durante alguns dias...

Como explica Shen Dingli, especialista de relações internacionais na universidade Fudan em Xangai (e colaborador regular do Monde Diplomatique) “a China trata a Coreia do Norte com luvas, porque teme o que se poderia passar se o regime se afundasse”: afluxo de refugiados, reforço de uma minoria coreana até agora muito calma, presença de tropas americanas nas suas fronteiras – perdendo o Norte o papel de Estado tampão – colocação em causa dos seus interesses económicos.

Indispensável para Pyongyang, o comércio sino-coreano não é essencial para Pequim, apesar de não ter parado de crescer: mais de 62,4% em 2010 e de 24,7% no decurso dos primeiros seis meses de 2011, segundo os números oficiais. As somas envolvidas são modestas (cerca de 6 mil milhões de dólares em 2010 – 4.650 milhões de euros). Em contraste, a Coreia do Norte tem um subsolo extremamente rico e é conhecido o apetite chinês pelas matérias-primas; joint-ventures foram já criadas...

Mas mesmo no seio das elites chinesas, o tratamento com luvas começa a ser contestado e alguns reclamam mão-de-ferro. Vê-se porquê “a China deverá continuar a apoiar este franco-atirador embaraçoso”, interroga Shen Dingli, para quem se a Coreia do Norte não quiser ouvir a razão, “deve pagar um preço severo” pela sua teimosia. Por sua vez, o jornal oficial Global Timesadverte: “a política da China face à Coreia do Norte deverá evoluir no tempo, mas a mudança não pode ser feita à custa de uma perda de influência da China ou incitando um afrontamento com a Coreia do Norte”.

De facto, Pequim inicia uma viragem tentando manter o controlo. Mas os chineses assim como os americanos sabem perfeitamente que as sanções e as ameaças raramente são eficazes. Ninguém tem interesse num confronto direto.

Artigo de Martine Bulard, publicado em Os Blogues do Diplo - “Planeta Ásia (blog.mondediplo.net) a 10 de abril de 2013. Tradução de Carlos Santos para esquerda.net


Notas do tradutor

1"Gangnam Style" é um coloquialismo coreano, referente ao estilo de vida luxuoso da zona rica de Seul (Gangnam) e a expressão ficou famosa por uma canção com o mesmo nome cantada pelo rapper sul-coreano Psy, cujo vídeo foi o primeiro a atingir mil milhões de visualizações (ver mais em Gangnam Style na wikipedia)

2 Ler Philippe Pons, «En Corée du Nord, la société s’éveille», Le Monde diplomatique, janeiro de 2011

3Fórum Boao para a Ásia (http://english.boaoforum.org/) foi constituído em 2001 por 26 Estados asiáticos, segundo o modelo do Fórum de Davos e tem sede em Boao, Hainan, na China. O Fórum Boao 2013 decorreu entre 6 e 8 de abril, com intervenções de Bill Gates, George Soros e Christine Lagarde, O presidente chinês, Xi Jinping interveio a 7 de abril.

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