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A Tunísia em tempo de Fórum Social Mundial

O meu primeiro contacto com a realidade tunisina foi a participação, na tarde de 24 de Março, no comício internacional sobre a dívida organizado pela Frente Popular no Palácio dos Congressos e que se seguiu a um encontro mediterrânico sobre a dívida, questão política central, lá como cá.
Homenagem aos mártires da revolução tunisina na manifestação de abertura do Fórum. Foto Enlucha/Flickr

A Tunísia fervilha, vibra e luta. Quem chegou a Tunes uns dias antes do início do Fórum Social Mundial e tinha quarto reservado no hotel El Hana, na Avenida Bourgadi, no centro da cidade, encontrou o hotel fechado pelo facto de os seus trabalhadores estarem em greve.

Os trabalhadores do aeroporto também tinham uma greve marcada para o final de Março, mas a UGTT (União Geral Tunisina do Trabalho) sugeriu-lhes o adiamento para Abril, de forma a permitir que todos e todas as  participantes no Fórum pudessem chegar a Tunes.

O meu primeiro contacto com a realidade tunisina foi a participação, na tarde de 24 de Março, no comício internacional sobre a dívida organizado pela Frente Popular no Palácio dos Congressos e que se seguiu a um encontro mediterrânico sobre a dívida, questão política central, lá como cá.

Formada em Setembro de 2012, esta coligação da esquerda laica e anti-capitalista engloba 12 partidos e também organizações como RAID (ATTAC e CADTM)(1). Em 6 de Fevereiro deste ano, Chokri Belaid, advogado de defesa de presos políticos durante a ditadura de Ben Ali e uma das figuras emblemáticas da Frente Popular, foi morto à queima-roupa quando saia de sua casa.
O assassinato de Belaid deu origem a novas manifestações de massas e gerou uma onda crescente de revolta profunda.

O ambiente no comício é de luta. É projectado um vídeo com imagens das manifestações de massas que conduziram à queda de Ben Ali, dos confrontos com a polícia e o exército. E de muitas manifestações em que Chokri Belaid tinha sido o principal orador. O comício fica ao rubro com esta homenagem. Há lágrimas, emoção, toda a gente de pé. Grita-se: "Abaixo a ditadura, abaixo o capital". Depois também um filme sobre Hugo Chávez, com toda a gente de pé a cantar o "Hasta Siempre".

A assistência é composta por mais de 1500 pessoas. Muita gente jovem, sobretudo mulheres de todas as idades. Nenhuma com véu ou lenço. Mas também poucas oradoras mulheres entre as 22 intervenções.

Marie-Christine Vergiat, eurodeputada do GUE/NGL (Front de Gauche) e eu própria estamos entre os oradores. Falo da dívida, da situação em Portugal e na Tunísia, do memorando, da desobediência necessária. E também da precariedade e das lutas, e do momento histórico em que se inicia uma frente mediterrânica contra a dívida. Não é "apenas" o Mediterrâneo que nos une, mas também a luta contra a imposição de uma dívida que nos estrangula e que todos sabemos que não conseguirá jamais ser paga.

Hamma Hammami, porta voz da Frente Popular, encerra o comício. Com uma voz calma mas uma presença magnetizante, propõe a suspensão do pagamento da dívida nos próximos três anos. (2) E desafia o governo a mudar de rumo. Garante que a Frente Popular virá para a rua exigir a demissão do novo governo chefiado pelo Ennadda (partido islamita da Irmandade Muçulmana que ganhou as eleições de Outubro de 2011 para a Assembleia Nacional Constituinte) e que tomou posse em Março último, no seguimento da demissão do governo de Jebali, face às mobilizações que se seguiram à morte de Chokri Belaid. Do novo governo, tal como do anterior, fazem ainda parte o Congresso para a República (o partido de Mazourki) e o Ettakattol (membro da Internacional Socialista, alias como o anterior RCD de Ben Ali). Estes três partidos constituem a troika tunisina.

Nos dias seguintes, Moncef Marzouki, presidente da República transitório, reagiu violentamente ao discurso de Hammami a partir do Qatar, em declarações feitas à Al Jazeera, dizendo que se quiserem desestabilizar a troika ele enviaria forças de choque para as ruas. Este facto inédito de fazer críticas à oposição quando se encontrava no estrangeiro e de incendiar os ânimos caiu mal em muitos sectores, ao ponto de estar a correr na Assembleia Constituinte uma petição para uma moção de censura a Marzouki (no momento em que escrevo, a moção contava já com a assinatura de mais de 50 deputados/as)

No dia da marcha de abertura do Fórum, o GUE/NGL organizou um jantar informal para o qual foram convidados a Frente Popular da Tunísia, uma delegação saauri a ATTAC, o Comité pela Anulação da Dívida do Terceiro Mundo (CADTM) e outras organizações e que permitiu um diálogo entre os/as deputados/as presentes e as organizações citadas.
Fico sentada ao lado de Fathi Chamki, coordenador de RAID (ATTAC + CADTM da Tunísia) e organizador da conferência sobre a dívida, e de Ahmed Khaskhousi, deputado da Frente Popular. A conversa flui como se nos conhecêssemos desde sempre. Há tanto para partilhar! Ambos falam da importância para a esquerda tunisina da realização do Fórum Social Mundial aqui. De como a marcha foi mobilizadora e a conferência sobre a dívida importante. Falam das greves e das lutas sociais, mas também da possibilidade de terem um bom resultado eleitoral nas eleições que se deverão realizar ainda este ano, depois da Constituição estar pronta.

No dia em que parto, os jornais denunciam a manipulação dos números feita pelo Ministério das Finanças e pelo Banco Central Tunisino relativos à taxa de crescimento (3.2% e não 3.6%) e ao défice orçamental (9.1% e não 5.9%)! A mentira dos números oficiais destinava-se a preparar o documento dirigido ao FMI para assistência financeira. (3)
Mais uma vez está em causa falta de transparência do governo da troika. Face à iminência do acordo com o FMI, a Frente Popular tem exigido um debate público na TV, em vez de negociações de gabinete, tendo-se mesmo declarado disponível para esse formato televisivo (4)

Um país em que 80% dos trabalhadores do privado têm contratos precários, em que uma professora primária com 26 anos de trabalho ganha 400 euros por mês, em que os jovens licenciados emigram ou estão no desemprego (mas organizam-se), em que o governo tenta fazer acordo com FMI para um empréstimo que vai fazer disparar a dívida, em que o movimento sindical é forte e os movimentos sociais florescem e se implantam, em que há cada vez mais mulheres a reivindicar-se do feminismo é certamente um país numa encruzilhada. Está tudo em aberto. A solidariedade da esquerda é essencial para que essa encruzilhada se possa transformar numa grande promessa.

(1) http://www.esquerda.net/dossier/tun%C3%ADsia-cria%C3%A7%C3%A3o-de-uma-%E...
(2) http://www.leconomistemaghrebin.com/2013/03/25/le-front-populaire-appell...
(3) http://www.imf.org/external/french/np/sec/pr/2013/pr1335f.htm
(4) http://www.esquerda.net/dossier/frente-popular-recusa-oferta-do-fmi/26725

Sobre o/a autor(a)

Professora universitária. Ativista do Bloco de Esquerda.
política: 
fsm 2013
(...)

Neste dossier:

Fórum Social Mundial 2013 na Tunísia

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FSM 2013: Declaração da Assembleia dos Movimentos Sociais

A nona edição do Fórum Social Mundial terminou este sábado na capital tunisina com uma manifestação de solidariedade com a Palestina que juntou milhares de pessoas. O esquerda.net publica a Declaração da Assembleia dos Movimentos Sociais no FSM 2013.

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