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No Chipre lava-se dinheiro. Mas e no resto da Europa, não?

A justificação do dinheiro sujo russo para expropriar depósitos nos bancos do Chipre é indecente e seletiva. Segundo os índices da ONG Tax Justice Network, o Chipre ocupa o 20º lugar na tabela mundial de opacidade financeira. Acima dele estão seis nações europeias, como a Alemanha, em nono lugar. Artigo de Rafael Poch, do La Vanguardia.
Foto Muau/Flickr

Após a estabilização alcançada pelo Banco Central Europeu (BCE) em setembro, quando deu garantias ilimitadas ao mercado com apoio de Merkel, muitos perguntavam em Frankfurt quanto duraria a tranquilidade. Afinal, a Europa estava a trocar uma crise financeira por uma crise de emprego e recessão. Primeiro vieram as eleições italianas e agora os problemas no Chipre. De novo a vontade popular – na Itália, as eleições, no Chipre, o parlamento – interpõe-se no caminho do errático Diktat europeu.

Este segundo sobressalto ilustra a fragilidade da situação europeia e atrapalha a reeleição, até agora segura, da chanceler alemã para o seu terceiro mandato, que segue o lema: “fizemos bem!”. Enquanto isso, avança a contestação a Berlim e a Bruxelas. O Chipre demonstrou possuir um sentido de dignidade nas negociações, apesar de continuar a ser uma lavandaria de dinheiro sujo russo.

O Chipre possui uma história de colonialismo e dependência que começou em 1878, quando a ilha foi adquirida dos otomanos pela Inglaterra vitoriana. A sombra do jugo inglês, que nos anos 50 ignorou o referendo nacional cipriota a favor da “Enosis” (que visava a união com a Grécia), paira sobre os cipriotas até hoje em forma de bases militares britânicas três vezes maiores que Guantánamo. A partir delas o Reino Unido lançou em 1956 os seus infames bombardeios neocolonialistas contra o Egito de Nasser e contribuiu para o desastre do Iraque. 

Depois da sua independência, em 1960 (graças à tenacidade do exemplar Patriarca Makarios, da Igreja Ortodoxa, autocéfala desde o século V) seguiu-se a invasão e colonização pelo exército turco, golpista e serviçal da NATO por excelência, além da injusta e brutal repartição da ilha em 1974, um escândalo sangrento que a Europa permitiu que o exército turco realizasse.

A democracia cipriota foi exemplar, com alto nível de instrução, menos corrupção que na Itália e Espanha e eleições limpas. Por isso não é nenhuma casualidade que o agravo lançado pelo comando europeu tenha indignado o Chipre e que os sentimentos em relação à Rússia sejam favoráveis. 

A solução expropriatória imposta tinha como principal justificação uma questão de política interna alemã em período pré-eleitoral: os resgates dos bancos não são populares na Alemanha. E com razão. Mas a Europa há muito que vem salvando bancos internacionais com dinheiro do contribuinte, especialmente bancos dos países centrais, os mais expostos. Isso é o que os eleitores alemães ignoram, em grande parte graças aos seus meios de comunicação.

A jogada expropriatória imposta aos cipriotas demonstra, mais uma vez, a desigualdade entre as nações europeias, algumas delas sem direito algum à soberania, algo que o Chipre conserva com boa memória na sua biografia.

Ao anunciar, em outubro de 2008, que garantia aos alemães os seus depósitos bancários, Merkel afirmou que o contrário significava “comprometer a confiança na ordem social”. A solução cipriota demonstra que esta confiança pode ser destroçada sem problemas nos países da periferia. Um aviso geral para rebeldes em potencial.

A justificação do dinheiro sujo russo é indecente e seletiva. Segundo os índices da ONG Tax Justice Network, o Chipre ocupa o 20º lugar na tabela mundial de opacidade financeira. Acima dele estão seis nações europeias, como a Alemanha, em nono lugar. 

A campanha da imprensa alemã contra o “dinheiro sujo dos oligarcas russos no Chipre” coincidiu com revelações sobre generosos depósitos de oligarcas alemães, tratados como “empresários proeminentes”, no paraíso fiscal panamenho: Piëch, o dono da Porsche, Quandt, BMW, a família de banqueiros Finck, o rei do café Jacobs, e o editor do império Burda, entre outros. 

De repente, na Alemanha o conceito de “oligarca” –“pessoas que pertencem a um grupo reduzido e exercem o poder supremo” – restringiu-se a quem nasceu na Rússia. Um estudo do SPD divulgado em janeiro estima em 150 mil milhões de euros a fraude fiscal que ocorre anualmente na Alemanha. A cifra representa 16% da receita total do Estado. Qual é então a enfermidade cipriota? Talvez oferecer a empresas russas o estatuto fiscal favorável que na Irlanda é completamente respeitável?

Os cipriotas não inventaram nada. Nos seus melhores dias, o “modelo Chipre” gerava em Londres 10% do PIB britânico. Na Irlanda existe um esquema idêntico ao cipriota de baixos impostos para empresas, que continuou a funcionar tranquilamente inclusive após o resgate de bancos internacionais concedido a esse país. 

O primeiro-ministro de uma grande lavandaria de dinheiro internacional, Luxemburgo, o simpático Jean-Claude Junker, foi desde janeiro, e durante oito anos, chefe do Eurogrupo. Quem na Alemanha fala do setor bancário “sobredimensionado” do Chipre – Merkel, Shäuble e Steinbrück, entre outros – são os mesmos que liberalizaram a “praça financeira alemã”. 

Quem não tem uma banca “sobredimensionada” na Europa do cassino? A diferença essencial de todo o assunto é que agora trata-se de um país da periferia, pequeno, e que o dinheiro em jogo é fundamentalmente russo e afeta pouco os principais jogadores.

O Chipre jogou como todos, mas a principal roleta estava em Londres, Frankfurt e Nova York, não em Nicósia. A ilha mediterrânea tinha uma dívida pública de 48% em 2008 e foi, entre outras coisas, uma vítima da má política europeia em relação à Grécia, que a Troika agravou com a sua receita. O abatimento da dívida grega custou três mil milhões de euros aos bancos cipriotas.

Agora dizem que os mercados entenderam a mensagem deste castigo político aos depositantes russos que lavavam dinheiro no Chipre. Ser russo e ter dinheiro no Chipre não é necessariamente “lavar” e, em todo o caso, o que acontece com a lavagem na Suíça, nas ilhas Caimão, Luxemburgo, Estados Unidos, Jersey, Alemanha, Reino Unido, Bélgica e Áustria, citando apenas alguns dos vinte países onde as finanças são mais obscuras que no Chipre – segundo a ONG Tax Justice Network? 

E qual o interesse de Moscovo? Um enorme depósito de gás que pode interessar ao consórcio russo Gazprom. Uma possível base militar para a frota russa em Limasol, que poderia ser uma alternativa para manter presença no mediterrâneo Oriental se Moscovo acabar por sair da Síria de Assad... O mais irritante da situação, vista de Berlim e Bruxelas, é este exercício de soberania exemplificado pela viagem do ministro das Finanças do Chipre até Moscovo. O comando europeu, que puniu Rajoy por questionar o déficit, e Papandreu, por propor um referendo, será implacável com isso.

O caso cipriota é mais um abuso da mentalidade criminosa que está a desintegrar a zona euro. Trata-se de utilizar a situação para que aconteça o que o diário ‘Die Welt’ descreve como “um precedente que tenha efeito disciplinador sobre outros países em crise relutantes a concretizar reformas”. Ante este trato não é de estranhar que dois em cada três cipriotas apostem em abandonar o euro e fortalecer as relações com a Rússia, como assinala uma sondagem da Prime Consulting. E que 91% apoiem o “não”, unânime, de seu parlamento em relação à tomada dos depósitos. 


 

*Tradução por Roberto Brilhante para a Carta Maior.

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