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Zizek: Por que os fundamentalistas de livre mercado acreditam que 2013 será o melhor ano de todos

Neste artigo, o filósofo Slavoj Zizek contraria a tese em voga que defende que a crise não existe, mas o progresso é que se afastou do ocidente. E procura explicar que a hegemonia europeia estar a ser substituída pelo "capitalismo de valores asiáticos", com mais restrições à democracia, o que dá lugar a novas rebeliões nascidas das expetativas frustradas das populações.
Slavoj Zizek. Foto Opera Mundi

A edição de natal da revista britânica The Spectator publicou um editorial chamado “Por que 2012 foi o melhor ano de todos?” (disponível aqui, em inglês). O texto criticava a ideia de que vivemos em “um mundo perigoso e cruel, em que as coisas estão más e ainda pioram”. Eis o parágrafo de abertura: “Talvez não pareça, mas 2012 foi o ano mais formidável na história mundial. Essa afirmação soa algo extravagante, mas pode ser corroborada pelos factos. Nunca houve menos fome, menos doenças ou mais prosperidade. O ocidente permanece num marasmo económico, mas a maioria dos países em desenvolvimento está a progredir e as pessoas estão a sair da pobreza a uma velocidade jamais registada. Felizmente o número de mortos pela guerra ou por doenças naturais também está baixo. Vivemos na idade do ouro.”

Essa mesma ideia tem sido fomentada de modo sistemático numa série de bestsellers, que vai de Rational Optimist, de Matt Ridley, a Better Angels of Our Nature, de Steven Pinker. Também há uma versão mais prática que se costuma ouvir nos media, principalmente nos países fora da Europa: crise, que crise? Vejamos os chamados países do BRIC – Brasil, Rússia, Índia e China –, ou países como Polónia, Coreia do Sul, Singapura, Peru, até mesmo vários Estados da África subsaariana: todos estão a progredir. Os perdedores são a Europa Ocidental e, até certo ponto, os Estados Unidos – então não estamos a lidar com uma crise global, mas simplesmente com a mudança do progresso, que se afasta do Ocidente. Um símbolo poderoso dessa mudança não seria o facto de que, recentemente, muita gente de Portugal, país em crise profunda, está voltando para Moçambique e Angola, ex-colónias de Portugal, mas dessa vez como imigrantes económicos, e não como colonizadores?

Até mesmo no que diz respeito aos direitos humanos: a situação na China e na Rússia não é melhor agora do que há 50 anos? Descrever a crise existente como um fenómeno global, como dizem, é uma típica visão eurocentrista advinda dos esquerdistas que geralmente se orgulham de seu antieurocentrismo. A nossa “crise global”, na verdade, é um mero abalo local numa história mais ampla do progresso geral.

Mas é preciso conter nossa alegria. A pergunta que deve ser feita é: se a Europa, sozinha, está em declínio gradual, o que está a substituir a sua hegemonia? A resposta é: “o capitalismo de valores asiáticos” – o que, obviamente, não tem nada a ver com o povo asiático e tudo a ver com a tendência nítida e atual do capitalismo contemporâneo em limitar ou até mesmo suspender a democracia.

Essa tendência não contradiz de modo nenhum o tão celebrado progresso da humanidade – ela é sua característica imanente. Todos os pensadores radicais, de Marx aos conservadores inteligentes, eram obcecados por esta questão: qual é o preço do progresso? Marx era fascinado pelo capitalismo, pela produtividade sem precedentes que ele desencadeava; mas Marx também frisava que esse sucesso engendra antagonismos. Devemos fazer o mesmo hoje: ter em vista a face obscura do capitalismo global que fomenta revoltas. 

As pessoas rebelam-se não quando as coisas estão realmente ruins, mas quando as suas expectativas são frustradas. A Revolução Francesa ocorreu apenas quando o rei e os nobres começaram a perder o poder; a revolta anticomunista de 1956 na Hungria eclodiu quando Imre Nagy já era primeiro-ministro há dois anos, depois de debates (relativamente) livres entre os intelectuais; as pessoas rebelaram-se no Egito em 2011 porque houve um certo progresso económico sob o governo de Mubarak, dando origem a uma classe de jovens instruídos que participavam da cultura digital universal. E é por isso que o pânico dos comunistas chineses faz sentido: porque, no geral, as pessoas hoje estão a viver melhor do que há quarenta anos – os antagonismos sociais (entre os novos ricos e o resto) explodem e as expetativas são muito mais elevadas.

Eis o problema com o desenvolvimento e o progresso: são sempre desiguais, dão origem a novas instabilidades e antagonismos, geram novas expectativas que não podem ser correspondidas. No Egito, pouco antes da Primavera Árabe, a maioria vivia um pouco melhor do que antes, mas os padrões pelos quais mediam sua (in)satisfação eram muito mais altos.

Para não perder o elo entre progresso e instabilidade, é preciso realçar sempre como aquilo que, à primeira vista, parece ser a realização incompleta de um projeto social, na verdade sinaliza a sua limitação imanente. Existe uma história (apócrifa, talvez) sobre o economista keynesiano de esquerda John Galbraith: antes de uma viagem à URSS no final da década de 1950, ele escreveu ao seu amigo anticomunista Sidney Hook: “Não se preocupe, não me deixarei seduzir pelos soviéticos e voltarei para casa dizendo que eles têm socialismo!”. Hook respondeu imediatamente: “Mas é isso que me preocupa – que você volte dizendo que a URSS não é socialista!”. O que Hook temia era a defesa ingénua da pureza do conceito: se as coisas derem errado com a construção de uma sociedade socialista, isso não invalida a ideia em si, mas significa apenas que não a executamos apropriadamente. Essa mesma ingenuidade não é detetada nos fundamentalistas de mercado da atualidade?

Durante um recente debate televisivo na França, quando o filósofo e economista francês Guy Sorman afirmou que a democracia e o capitalismo necessariamente andam juntos, não pude evitar fazer esta pergunta óbvia: “Mas e a China?”, ao que ele me repreendeu: “Na China não há capitalismo!” Para o pós-capitalista fanático Sorman, um país não é verdadeiramente capitalista se não for democrático, exatamente da mesma maneira que, para os comunistas democráticos, o estalinismo simplesmente não era uma forma autêntica de comunismo.

É assim que os atuais apologistas do mercado, num sequestro ideológico sem precedentes, explicam a crise de 2008: não foi o fracasso do livre mercado que a provocou, mas sim a excessiva regulação estatal; o facto de que a nossa economia de mercado não foi um verdadeiro Estado de bem-estar social, mas esteve, em vez disso, nas garras desse Estado. Quando rejeitamos as falhas do capitalismo de mercado como infortúnios acidentais, acabamos num “progress(ism)o” que encara a solução como um uso mais “autêntico” e puro de uma noção, tentando assim apagar o fogo com gasolina.


Tradução: Roberto Bettoni

(*) Artigo publicado originalmente no Blog da Boitempo republicado na Carta Maior

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