You are here

O mau serviço de “Lincoln”

A crítica de Alan Maass ao filme de Spielberg (“O grande intransigente”) acrescentou alguma complexidade à discussão deste filme excelente – mas com falhas profundas como relato histórico. Por Charlie Post
Soldado negro nas tropas da União: "Abram caminho para a Liberdade!"

Maass está absolutamente certo ao afirmar que Lincoln, nem no filme nem na história, foi “um grande conciliador”. Os paralelos estabelecidos com Obama não são precisos, apesar de o guionista Tony Kushner assim o desejar (veja-se a sua reveladora entrevista a Bill Moyers). Conforme o demonstram biografias recentes, em particular a de James McPherson “Abraham Lincoln e a Segunda Revolução Americana” e a de Eric Foner “A prova de Fogo: Abraham Lincoln e a Escravatura Americana”, quando Lincoln assumia uma posição política, nunca vacilava.

No entanto, devemos ter bem claro que, conforme as palavras de McPherson, Lincoln era “um revolucionário relutante”. Lincoln era um pragmático. Reagia a “factos no terreno” – em especial, a fuga em massa de escravos durante a guerra (aquilo que W.E.B. DuBois chamou de “greve geral”) e o resultante colapso da escravatura.

E é precisamente a “relutância” de Lincoln para liderar uma revolução profunda no Sul durante a Guerra Civil – e o papel decisivo da fuga em massa de escravos das plantações – que falta ao retrato hagiográfico de Spielberg e Kushner.

Não basta apenas argumentar que “Lincoln não é sobre tudo o que aconteceu durante a Guerra Civil”. A decisão de Spielberg e Kushner de focar apenas as maquinações parlamentares que envolveram a Décima-Terceira Emenda, fez um magnífico filme, mas criou uma visão de emancipação que tem profundas falhas.

Em primeiro lugar, Lincoln é apresentado como um defensor consistente da abolição descompensada, imediata e permanente da escravatura – uma posição que ele só viria a abraçar em meados de 1862. Antes da sua decisão de emitir a Proclamação da Emancipação, Lincoln promoveu, sem sucesso, vários esquemas para a emancipação gradual, com a compensação dos proprietários dos escravos (em particular daqueles nos estados “fronteiriços”) e o envio de colonização de afro-americanos à América Central, às Caraíbas ou a África.

Em segundo lugar, o filme exagera muito quanto ao impacto da Décima Terceira Emenda. Muita da pesquisa histórica dos últimos 20 anos tem revelado que nos finais de 1864, a escravatura como base de produção no Sul estava morta.

Embora alguns dirigentes políticos Confederados possam ter acreditado que a “instituição singular” podia ser restabelecida, os próprios antigos escravos – através da sua ligação ao exército da União como espiões, trabalhadores e soldados e a auto-organização de sindicatos, apreensão de plantações abandonadas e outros – tinham destruído a escravatura. (De acordo com Kevin Anderson, o autor de Marx nas Margens, Marx adota a noção de “auto-emancipação” devido às lutas dos escravos durante a Guerra Civil Americana.) Simplificando, a Décima Terceira Emenda reconheceu legalmente a realidade da luta de classes no Sul.

Imagine-se como nós à esquerda, em particular os que estávamos na tradição do “socialismo a partir de baixo”, teríamos reagido a um filme sobre a organização dos sindicatos industriais da década de 1930 que apenas olhasse para as deliberações do Supremo Tribunal dos Estados Unidos no Conselho Nacional da Relações de Trabalho contra Jones & Laughlin Steel Corporation, o caso de 1937 que sustentou a constitucionalidade da Lei Nacional de Relações de Trabalho de 1935?

Em vez de retratarem a auto-actividade e auto-organização dos trabalhadores industriais que lançaram as greves gerais por toda a cidade de Mineapolis, Toledo e São Francisco em 1934, as ondas de greves na indústria básica em 1935 e 1936, e as greves sit-down de 1936-37, deveríamos ter longas discussões entre os juízes do Supremo Tribunal para debater se a cláusula do comércio interestadual da Constituição dos Estados Unidos deve ou não ser aplicada aos sindicatos.

Ficaria surpreendido se alguém na nossa tradição política argumentasse que um filme como este “não era sobre tudo o que aconteceu na década de 1930” em vez de condenar a sua fetichização à custa das lutas das massas da classe trabalhadora.

Charlie Post, New York City

8 de Janeiro de 2013

Tradução de Noémia Oliveira para o Esquerda.net

(...)

Neste dossier:

Lincoln

O filme de Steven Spielberg despertou o interesse sobre um dos mais importantes personagens da história da América do Norte, no momento em que o jovem país vivia a sua segunda revolução, após a da independência. Motivo mais que suficiente para publicar este dossier, que apresenta diferentes e polémicos pontos de vista sobre o filme, o papel de Lincoln na abolição da escravatura, e as influências de Marx. Dossier organizado por Luis Leiria.  

O grande intransigente

Há quem veja “Lincoln” como uma fábula sobre Washington dos dias de hoje – com Lincoln a desempenhar o papel de Barack Obama – e as manobras para pôr um fim legal ao crime histórico que foi a escravatura como nada mais que o equivalente à cínica foto da campanha de Obama com o governador de New Jersey, Chris Christie, depois do furacão Sandy. Mas está total e redondamente enganado. Por Alan Maass, do Socialist Worker.

O mau serviço de “Lincoln”

A crítica de Alan Maass ao filme de Spielberg (“O grande intransigente”) acrescentou alguma complexidade à discussão deste filme excelente – mas com falhas profundas como relato histórico. Por Charlie Post

Qual foi o papel de Lincoln?

Na sua resposta ao meu artigo O grande intransigente, Charlie Post (O mau serviço de “Lincoln”) pergunta o seguinte: como teriam os socialistas reagido “a um filme sobre a organização dos sindicatos industriais da década de 1930 que apenas olhasse as deliberações do Supremo Tribunal dos Estados Unidos?” Mas eu respondi a esta questão. Por Alan Maass.

O problema de “Lincoln”, de Steven Spielberg

O fim da escravatura não se deu porque Lincoln e a Câmara dos Representantes votaram a favor da Décima Terceira Emenda, mas sim porque os escravos estavam a apossar-se da sua liberdade. A escravatura estava a extinguir-se no terreno, mas o filme não aborda essa perspetiva. Por Jon Wiener, The Nation.

A emenda que aboliu a escravatura

Conheça o texto da décima terceira emenda à Constituição dos Estados Unidos.

O que o filme de Spielberg não diz sobre Lincoln

O filme narra como esse presidente lutou contra a escravidão e pela transformação dos escravos em trabalhadores. O que a obra cinematográfica não conta, porém, é que Lincoln também lutou por outra emancipação: que os escravos e os trabalhadores em geral fossem senhores não apenas da sua atividade em si, mas também do produto resultante de seu trabalho. Por Vicenç Navarro

Marx e Lincoln

Vicenç Navarro exagera ao afirmar que Lincoln foi altamente influenciado por Marx e outros pensadores socialistas, com os quais partilhou os seus desejos imediatos, simpatizando com eles e levando a sua postura a altos níveis de radicalismo. Por Álvaro Bianchi

A Abraham Lincoln, Presidente dos Estados Unidos da América

A Mensagem da Associação Internacional dos Trabalhadores ao presidente Abraham Lincoln dos Estados Unidos, por ocasião da sua reeleição, foi redigida por Karl Marx, por decisão do Conselho Geral.

Lincoln e a escravidão: Nem tanto ao céu, nem tanto à terra

Os documentos históricos permitem-nos pensar que ainda que a emancipação geral tenha sido um ganho político do seu governo, Lincoln e muitos dos seus aliados não acreditavam na convivência pacífica entre brancos e negros em liberdade. Não se reconhecia nos afro-americanos os mesmos direitos sobre a formação nacional que tinham os homens brancos. Por Maria Clara Sales Carneiro Sampaio, investigadora da Universidade de São Paulo

Lincoln de Spielberg, Karl Marx e a Segunda Revolução Americana

O “Lincoln” de Steven Spielberg transcorre num único mas crucial mês da Guerra Civil dos EUA, um conflito equivalente a uma segunda revolução americana. Em janeiro de 1865, quando faltavam poucos meses para a vitória da União sobre a Confederação, o presidente Abraham Lincoln decidiu fazer aprovar a Décima Terceira Emenda à Constituição dos EUA, para a abolição da escravatura sem condições e sem indemnização aos proprietários de escravos. Por Kevin Anderson