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Uma história extraordinária

As autoridades libanesas conseguiram resistir ao contágio da guerra civil na Síria e manifestaram perante o mundo a vontade de fugir ao horror da guerra.

O Líbano tem o tamanho de dois Algarves e nele cabem quatro milhões de pessoas. Quando na Síria teve início a guerra, vaticinou-se que o Líbano lhe seguiria rapidamente os passos. Não era difícil de prever: um país com 18 grupos religiosos, habituado às tensões internas e às pressões externas, dividido em relação ao regime sírio e frágil não teria por onde escapar. Mas não foi assim. Muçulmanos – xiitas, sunitas, alauitas, drusos e outros tantos – e cristãos – maronitas, ortodoxos, gregos e outros tantos –, que tanta dificuldade têm em entender-se em relação a quase tudo, entenderam-se no essencial: manterem-se unidos em relação à questão síria. As autoridades libanesas conseguiram resistir ao contágio da guerra civil na Síria e manifestaram perante o mundo a vontade de fugir ao horror da guerra. O país dividido conseguiu unir-se. Ninguém deu por isso.

À volta da Síria todas as portas se fecharam. Todas menos uma. No Líbano, mais uma vez, fez-se o que não se esperava e optou pela política de deixar entrar todos os que fugiam à guerra e à tragédia de uma vida destruída. No primeiro ano de guerra, entraram 20 mil refugiados sírios. No segundo, 268 mil. Entraram ainda mais 20 mil refugiados palestinianos vindos também da Síria e regressaram a casa 23 mil retornados libaneses. A estes têm de juntar-se os já acolhidos 280 mil refugiados palestinianos fugidos de outras guerras passadas. Da Síria entram, nada mais nada menos, três mil pessoas por dia. Estão por todo o país, em 800 comunidades. Precisam de tudo, perderam tudo nada têm de seu. Todos viram morrer, a todos morreram pessoas. O Líbano é um país sem saída, rodeado pela Síria, por Israel e pelo mar, mas acabou por ser a única saída para quem foge da guerra. Ninguém deu por isso.

Traumatizadas com os campos de refugiados palestinianos e literalmente no limite do espaço físico, as autoridades libanesas decidiram não construir campos. E assim a quase totalidade dos novos 278 mil refugiados está a ser acolhida por famílias num país onde metade da população vive na pobreza. A responsável das Nações Unidas desabafou: “os libaneses são criticados por tudo e por nada e ninguém conta esta história extraordinária”. Tem razão. O Líbano continua a ter todos os problemas que tinha antes e a esses somou novos. A instabilidade, a complexidade, a dificuldade de entendimento continuam a ser o pão nosso de cada dia no país dos cedros. As eleições estão à porta e as ameaças empolam-se. Tudo isso é verdade e, no entanto, foram capazes de fazer o que parecia impossível numa questão tão difícil. Basta pensarmos o que seria se fossem as nossas portas abertas e todos nós a acolhermos nas nossas casas mulheres e crianças que de tudo precisam todos os dias. É mesmo uma história extraordinária. Tudo preso por um fio, tudo seguro pela generosidade de quem pouco tem. O senão está à frente do nariz. Até quando aguentarão. Sem apoio efetivo de outros países, pouco mais.

Na fronteira vi chegar pessoas da guerra, conversei com quem já estava. Perguntei a uma mulher o que sentia. Respondeu-me: “agradeço a Deus ter-me aberto a porta”. Pois, deve ser isso mesmo, pensei, que nós humanos estamos a um passo curto de não estar à altura.

Artigo publicado no jornal “As Beiras” a 16 de Fevereiro de 2013

Sobre o/a autor(a)

Eurodeputada, dirigente do Bloco de Esquerda, socióloga.
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