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Privilégios ou direitos universais: o caso da ADSE

A ADSE não é um luxo de uma casta de privilegiados.

No arsenal de ataque ideológico contra o welfare state tem lugar de destaque a sugestão de que os funcionários públicos são uma casta de privilegiados. Privilegiados pela impermeabilidade dos seus serviços às oscilações da procura e pela consequente segurança do seu posto de trabalho, algo que a direita considera um escândalo que deve ser substituído pelo primado da insegurança para todos ("flexibilidade", na linguagem da direita). A direita vê em cada funcionário público um centro de custos e, no seu mundo ideal, serviços públicos qualificados é coisa que não cabe por ser sinónimo de gasto desnecessário.

A polémica sobre a extinção da ADSE está contaminada por este preconceito ideológico: a ADSE é um seguro só para funcionários públicos, os funcionários públicos são privilegiados, logo, como não deve haver privilégios para ninguém - perdão? não haverá aqui confusão?... -, a ADSE deve ser extinta. Ora sucede que a lógica é curta. Porque o que vem a seguir é decisivo: extinta a ADSE, como deve ser equacionado o sistema de proteção da saúde dos 1,3 milhões de pessoas agora incluídas nesse subsistema? A resposta é uma de duas: ou seguros privados de saúde para todos ou integração de todos no Serviço Nacional de Saúde. A primeira é a menina dos olhos da direita liberal. Ela é o desígnio consagrado no memorando com a troika, que impõe a eliminação até 2016 do financiamento público da ADSE e a progressiva indiferenciação entre seguro público e seguros privados de saúde.

Já a integração de todos os atuais beneficiários da ADSE no SNS é um princípio acertado. A existência de subsistemas de proteção fragiliza o serviço universal e, por isso, integrá-los favorece o bom princípio da universalidade. Mas o acerto abstrato precisa de ser também acerto concreto. Ora, uma integração de subsistemas como a ADSE no SNS, para ser virtuosa em concreto, requer um SNS em reforço e não em perda como aquele que o Governo vem impondo. Só um SNS com mais meios humanos, técnicos e financeiros e com uma cobertura geográfica e de valências médicas bem superior às que hoje oferece estaria em condições de integrar os beneficiários da ADSE sem perdas significativas de qualidade na satisfação do seu direito à saúde. Isso implica portanto uma escolha entre nivelar por baixo ou nivelar pelas melhores práticas.

A ADSE não é um luxo de uma casta de privilegiados. Os funcionários públicos descontam 1,5% do seu salário ilíquido para terem direito a um seguro complementar de saúde que lhes dá acesso a atos médicos e a medicamentos de que ficam obrigados a pagar uma parte do preço. Não é, pois, um favor que o Estado lhes presta, mas a garantia de um direito que é deles porque o pagam mês após mês.

Favor é o que a ADSE faz indevidamente ao sector privado de saúde ao aceitar tratamentos e internamentos em hospitais privados em áreas em que o SNS dispõe de competência instalada. Essa mais--valia gerada pelos subsistemas do SNS em favor da concorrência privada é, bem o sabemos, a garantia da viabilidade financeira e do lucro de grupos privados que operam na área da saúde. Estima-se que se se firmasse acordos apenas com hospitais do SNS, a ADSE pouparia cerca de cem milhões de euros. Na saúde como nas estradas, o Estado alimenta os privados até que estes o comam a ele.

Uma ADSE reformada só pode ter a eliminação deste vício como absoluta prioridade. Para isso só há um caminho: reforçar o SNS, os seus meios e as suas competências. Se assim não for, a eliminação da ADSE será apenas (mais) um pórtico para a eliminação do SNS. E esse, sabemo-lo bem, é o desígnio da direita que quer acabar com os serviços públicos de todos e não com os privilégios de alguns. Os de sempre.

Artigo publicado no “Diário de Notícias” de 1 de fevereiro de 2013

Sobre o/a autor(a)

Professor Universitário. Dirigente do Bloco de Esquerda
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