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Crise climática: Voltar a Doha

O objetivo deste artigo não é analisar políticamente a cimeira sobre o clima realizada em princípios de dezembro em Doha (Qatar). Esta análise já foi feita nos primeiros dias da Conferência e continua a ser correta (1). O nosso objetivo agora é atualizar os "resultados" do encontro, para que cada um compreenda bem onde nos encontramos no caminho para a catástrofe. Artigo de Daniel Tanuro.
Foto CIAT/Flickr

Um mini-Quioto II

O principal repto de Dona consistia em dar continuidade ao Protocolo de Quioto. Este protocolo é o ponto cardeal do braço de ferro entre os países capitalistas "desenvolvidos" e os outros. Para os primeiros, as crescentes emissões dos segundos justificam a exigência de um acordo global que imponha esforços importantes para todo o mundo; para os segundos, a questão é outra: que os primeiros reconheçam a sua responsabilidade histórica e dêem exemplo na luta contra o aquecimento global.

Em Doha optou-se por prorrogar os compromissos do Protocolo de Quioto. Mas, nesta altura, este Protocolo não é mais do que a sombra de si mesmo. O Japão, o Canadá, a Nova Zelândia e a Federação Russa já não fazem parte dele: este países juntaram-se aos EUA, segundo emissor mundial, depois da China – o primeiro emissor histórico. Assim, os países que continuam comprometidos com o Protocolo não representam mais do que cerca de 15% das emissões mundiais.

Por outro lado, os compromissos a que chegaram estão longe dos necessários. Segundo o GIEC, para que haja o mínimo de possibilidades do planeta não sofrer um aumento de 2,4ºC, os países desemvolvidos deveriam reduzir as suas emissões entre 25 e 40%, em relação às emissões de 1990. Ora bem, os compromissos adotados pelos países que continuam comprometidos com o protocolo de Quioto equivalem, no melhor, a 18%. A União Europeia, com o compromisso de reduzir 20%, apresenta-se como um bom aluno em relação a este objetivo. Mas na realidade, devido à recessão económica, as suas emissões já se tinham reduzido 17,6%, em 2011. Se tivermos em conta os créditos de emissão procedentes dos mecanismos flexíveis (CDM e MOC), a UE superou os seus objetivos... desde há já dois anos (-20,7%). É verdade que os países implicados aceitaram realizar esforços complementares, mas isso não são mais do que vagas promessas.

 

"O ar quente russo"

Uma questão determinante no quadro deste prolongamento é a do "ar quente russo". Por "ar quente russo" entendem-se as quotas de emissão auto-atribuídas pelos países da ex-URSS em função de não as terem utilizado anteriormente. Fazem-no com o argumento de que quando se decidiu fixar 1990 como ano de referência para medir a redução de emissões, a economia destes países, depois da queda do Muro, caiu a pique e isso fez com que acumulassem um superávit em direitos de emissão intercambiáveis no mercado do carbono. Como ninguém comprou esses directos, entre 2008 e 2012, a questão que se coloca é se os 13 biliões de direitos restantes (um direito =1 tonelada de CO2) poderiam ser transferidos no segundo período do compromisso?

A conferência de Doha deu a sua aprovação… com algumas restrições: os direitos (unidades de emissão) só poderão ser comprados por países que tenham superado a sua quota e só para conseguir 2% dos seus objetivos de redução durante o primeiro período. Não obstante, muitos governos já disseram que não os comprariam… Lógico: os objetivos de Quioto II são tão mináveis que nenhum país se verá na necessidade de comprar o "ar quente russo". Por isso, o importante neste ponto é que a Russia, a Ucrânia, a Bielorussia e o Cazaquistão conservem o seu direito de propriedade e, portanto, a possibilidade de vender esses direitos no mercado e que farão tudo para os preservar para além de 2020.

 

Créditos para o "Mecanismo de Desenvolvimento Limpo" (MDL)

O segundo período do Protocolo, que só afeta uma pequena parte dos países desenvolvidos, coloca o seguinte problema: terão direito a adquirir e vender créditos de emissão gerados pelos "Mecanismos de Desenvolvimento Limpo" (MDL), os países que não se comprometam com o acordo? Recordemos: os MDL são um sistema previsto em Quioto para compensar a emissão dos países industrializados através da compra de créditos de carbono gerados pelos investimentos "limpos" no Sul. Os EUA, o Canadá, o Japão, etc. querem preservar a possibilidade de aceder a estes créditos (o Japão, depois da União Europeia, é o principal comprador) porque o mercado de carbono é relativamente suculento. Os seus representantes argumentaram que o défice da procura de créditos já fez cair o preço dos mesmos para baixo de 1€, o que não favorece a transição energética. A Conferência rejeitou a solicitude… mas a questão continua, porque a jurisprudência da instância que gere os MDL dá mais razão aos requerentes.

 

Adaptação e dívida climática

Um segundo repto importante em Doha teve que ver com o financiamwento para a adaptação dos países do Sul. Em Copenhaga, os países desenvolvidos comprometeram-se em conceder somas crescentes de dinheiro para conseguir o objetivo de 100 mil milhões anuais, a partir de 2020. Esta decisão foi ratificada um ano depois em Cancún. Os meios de comunicação deram-lhe um eco considerável: os países capitalistas desenvolvidos, responsáveis por mais de 70% do aquecimento global, pareciam honrar desse modo a sua "dívida climática". Entretanto, fora dos focos, as coisas não são tão de cor de rosa. Em Doha, salvo alguns países europeus, a maioria dos Estados recusaram precisar a quantidade a que se comprometiam para estes próximos anos. Os países menos desenvolvidos tiveram que se contentar com promessas vagas sobre quantidades semelhantes às dos últimos anos (cerca de 10 mil milhões de dólares por ano)…

 

Acordo global?

Um terceiro repto tinha a ver com balizar a negociação dum futuro acordo global a adoptar em 2015 e que deveria ser aplicado a partir de 2020. A Conferência de Bali (2009) decidiu atuar conforme as projeções do GIEC; a de Cancun tinha adoptado como objetivo limitar o crescimento da temperatura até 2ºC ou mesmo 1,5ºC; e a de Durban continuou o exemplo pondo em pé um novo grupo de trabalho ad hoc para impulsionar uma ação decidida contra o aquecimento global. Não esqueçamos que, segundo o GIEC, para não superar 2ºC é necessário reduzir as emissões mundiais daquí até 2050 entre 50 e 85%, o que supõe que nos países desenvolvidos a redução deveria situar-se entre 80 e 95% e que a mesma deveria começar, o mais tarde, em 2015.

Muitos países em desenvolvimento, sobretudo os pequenos Estados insulares (AOSIS) exigem desde há anos que estes números sejam ratificados nas cimeiras das Nações Unidas e traduzidas em objetivos concretos. Em vão… E Doha não rompeu com esta tradição: a Conferência decidiu sómente "trabalhar com urgência sobre esse tema dada a necessidade de redzcir profundamente (?) as emissões e alcançar um límite nas emissões globais o mais rápido possível". A questão em jogo é, claramente, saber se a política climática deve ou não ser determinada em função dos relatórios científicos sobre o clima. A AOSIS fez propostas precisas nesse sentido durante a COP 17, mas todas elas foram rejeitadas em função das "dificuldades económicas"...

 

Responsabilidades diferenciadas

A negociação de um acordo global, aplicável a todos os países, apresenta outra questão política delicada: em que medida se respeitará o principio de "responsabilidades comuns mas diferenciadas"? Este principio é muito importante e está inscrito na Convenção no marco das Nações Unidas para as Mudanças Climáticas (UNFCCC). Desde há anos, os EUA e os seus aliados (sobretudo, o Canadá e a Austrália) manobram para que isso fique parado. Em Durban, opuseram-se com éxito a que os textos adoptados tivessem uma referência explícita a esse princípio. Em Doha repetiu-se o mesmo cenário: os EUA chegaram inclusivamente a retirar a referência às conclusões de Rio+20 pela simples razão de que nela se citavam os principios de equidade e responsabilidade diferenciada…

Certamente, esta questão constitui a pedra de toque das negociações. Este principio é defendido pela China, India, Bolivia, Cuba, Venezuela e numerosos países árabes produtores de petróleo face aos EUA e seus aliados. Torna-se difícil entender como se pode chegar a um acordo entre estes dois campos. Salvo se os relatórios científicos deixarem de ser o marco de referência para as negociações e cada país comunicar ao resto as medidas que pensa adoptar para salvar o clima. Esta posição (de bottom-up) é a que os EUA, a China, os grandes países emergentes e a UE impuseram em Copenhaga, através das negociações feitas paraleloamente à Conferencia. Sobre esta base, é possível um acordo… mas um acordo que não posibilitará situar-se abaixo dos 2ºC.

 

Pessimismo da razão

Depois de Copenhaga, mais de 80 governos comunicaram os seus "planos sobre o clima". A análise dos mesmos permite projetar um incremento da temperatura oscilando ente 3,5 e 4ºC daquí até ao fim do século. Estas projeções devem ser pegadas con pinças já que os principais emissores de gases com efeito de estufa as inventam para gerar confusión. Em primeiro lugar, os dados que comunicam não são muito claros e referem-se a uma gama muito amplia de temas. Em segundo lugar, os esforços de redução dos diferentes países são difíceis de medir e comparar. O plano de ação de Bali previa harmonizar a contabilidade e os relatórios das emissões. Mas estamos longe disso. Sobretudo, porque os EUA – uma vez mais! – rejeitam a harmonização das diferentes regras incluídas na Convenção no marco das Nações Unidas e no Protocolo de Quioto. Por seu lado, a China subestima provavelmente as suas emissões que se situam em 1,3 Gt de CO2 (2).

Num artigo escrito, pouco antes de Doha, Walden Bello e Richard Heydarian acreditaram que os dois principais emissores mundiais de gás de efeito de estufa se veriam obrigados a chegar a um acordo climático bilateral nos anos seguentes; um acordo que implicaria a redução das emissões obrigatórias por ambas partes; um acordo que serviria depois como pivot para um compromisso do resto de países (3). Esta análise pareceu-nos muito optimista. Não tinha em conta os interesses materiais em jogo e considerava que quem tem que tomar as decisões indispensáveis para evitar uma enorme catástrofe humana as tomaria de forma racional. Nada na história do capitalismo permite justificar esta esperança.


Notas

1/ Ver http://www.vientosur.info/spip/spip.php?article7470

2/ http://www.lemonde.fr/planete/artic...

3/ Ver Doha: Towards a grand compromise in climate negotiations: http://www.europe-solidaire.org/spip.php?article27178

 

* Daniel Tanuro é engenheiro agrónomo e jornalista, autor do livro "O Impossível Capitalismo Verde". Tradução: António José André

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