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No que toca aos animais, as leis são potencialmente perigosas

Matar cães que atacaram pessoas, depois de todos os males estarem feitos, nada faz pela segurança dos humanos.

Causou muita polémica o caso de uma criança que terá sido morta por um cão, arraçado de Pitbull, em Beja. Não pelo caso em si, note-se. Infelizmente, casos de cães que atacam pessoas, por vezes com consequências fatais, são relativamente frequentes. A novidade consiste em existir uma onda de indignação com a anunciada morte do cão.

A segurança das pessoas que convivem com cães é assegurada supostamente pela lei nº 315/2009, que introduz uma listagem de raças “potencialmente perigosas” e determina o tratamento a que os cães que cabem nesta categoria deverão ser sujeitos. Entre outras coisas, a lei estipula que um cão que ataque uma pessoa passa a ser considerado um animal perigoso, tendo de ser enviado para abate. Contra esta disposição, mais de 74 mil pessoas assinaram uma petição em defesa do cão que aguarda a morte no canil de Beja.

O que deu na cabeça de tanta gente para defender um cão que matou uma criança, é uma pergunta que assola muitas mentes. Não posso responder por outras pessoas mas posso explicar porque subscrevi esta petição e porque irei participar na concentração contra a morte de animais em canis, agendada para este sábado de tarde na Direção Geral de Veterinária, em Lisboa. Trata-se, acima de tudo, de recolocar o centro do debate onde interessa.

De uma lei que pretende regular o comportamento de humanos para com animais de companhia, espera-se que concilie dois objetivos: a segurança dos humanos e a proteção dos direitos dos animais. A presente lei sobre raças “potencialmente perigosas” não atinge nenhum destes objetivos.

A lei não protege os humanos desde logo porque faz pouco ou nada pela prevenção de acidentes. Nada é estipulado quanto ao treino e o apuramento genético de cães para estimular a sua agressividade, problema comum com cães usados em lutas ou com cães de guarda. Nada é dito quanto à necessidade de o cão ser criado de forma a poder libertar o stress acumulado, nomeadamente através de passeios diários. O único elemento positivo na lei, a obrigatoriedade de treino de cães, está ainda por regulamentar. Pior que isso, este elemento, como tantos outros, apenas se aplica aos cães de raças consideradas potencialmente perigosas, seguindo uma listagem que obedece mais a mitos infundados que às constatações de peritos/as em comportamento animal1.

De facto, qualquer cão de grande porte é potencialmente perigoso. Não porque seja particularmente feroz. Pelo contrário, as raças que lideram o ranking de ataques a pessoas são de pequeno porte2. A diferença entre cães de grande porte e de pequeno porte está nos estragos que podem provocar numa pessoa em caso de ataque. Pretender distinguir alguns dos cães de grande porte como sendo de raças “potencialmente perigosas” apenas serve para criar um estigma em torno destes cães e para desresponsabilizar quem tem cães de outras raças. Afinal, casos de ataques a pessoas por cães de raças popularizadas pelos filmes infantis não são tão raros quanto isso.

Uma lei que pretenda prevenir acidentes resultantes do convívio com cães terá de, portanto, superar a distinção racial e estipular normas comuns para todos os cães que, pelo seu porte, possam provocar lesões graves em humanos. Normas que têm de passar por uma estrita regulamentação da criação, pela proibição do treino para aumento da agressividade, pela penalização dos maus tratos que criam comportamentos agressivos (onde se inclui a negligência presente nos casos em que o cão está aprisionado em casa todo o dia), pela obrigação do uso de trela no exterior, pelo treino canino orientado para a prevenção de comportamentos agressivos, pela proibição da cirurgia estética (incluindo o corte de orelhas e cauda, comum em cães treinados para serem usados como armas) e pela recuperação dos cães que atacaram pessoas pelos/as donos/as, a seu cargo. Matar cães que atacaram pessoas, depois de todos os males estarem feitos, nada faz pela segurança dos humanos.

A lei nada faz, também, pela proteção dos direitos dos animais de companhia, porque segue a lógica de um sistema legal que trata todos os animais não humanos como objetos. Como objeto, um cão apenas é protegido legalmente se for propriedade de alguém. Ou seja, se alguém maltratar ou matar um cão que está registado como sendo propriedade de outrem, o/a dono/a do cão pode pedir uma indemnização, mas se o cão não estiver registado como sendo propriedade de outrem ou se for o/a próprio/a dono/a a responsável pelos maus tratos, a nossa legislação nada prescreve. Tudo o que temos na nossa legislação é uma lei de proteção animal que define maus tratos de forma extremamente vaga e que, para cúmulo, nunca foi regulamentada, e uma lei para as raças “potencialmente perigosas” que determina a morte de animais que atacam pessoas.

Insisto: matar o cão que terá morto uma criança não trará a criança de volta nem fará nada para impedir que casos como este se repitam. A execução pode servir para aliviar algumas consciências, mas apenas à custa do sacrifício do necessário debate sobre a reforma de uma legislação obsoleta e ineficaz. Pior ainda, a execução apenas torna a nossa sociedade mais cruel, por recusar liminarmente a um animal não humano o direito à vida que reconhece aos animais humanos. Uma disparidade tal de tratamento entre diferentes espécies de animais, apenas concebível à luz de uma ideologia extremista criada para justificar a violência imposta sobre animais não humanos, não é compatível com o socialismo moderno e progressista do qual me orgulho fazer parte.


1 Ver, por exemplo, a posição de Ian Dunbar, um dos mais reputados especialistas em comportamento animal: “Esse tipo de raciocínio é o mesmo que dizer que há determinadas nacionalidades de pessoas que são perigosas. Cães são cães! E basicamente os cachorros pequenos mordem mais, os cães maiores fazem mais estragos quando mordem e os cães mais velhos vão ficar cansados das pessoas se não forem socializados enquanto são cachorros.” (Rádio Renascença)

2 Segundo um estudo da Universidade da Pensilvânia, as raças que mais atacam pessoas e outros cães são os “salsichas” e os chihuahuas, enquanto que as raças consideradas “potencialmente perigosas” apresentam níveis de agressividade abaixo da média. (Folha de S. Paulo)

Sobre o/a autor(a)

Ricardo Coelho, economista, especializado em Economia Ecológica
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