Um deserto é a distância entre dois oásis

porTiago Pinheiro

21 de January 2013 - 10:16
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Adoecer é, hoje em dia, um imenso deserto. Longe do oásis onde se tratava da melhor forma, e depois se dava lugar à contabilidade, atravessa-se uma aridez em que a calculadora substitui a dignidade.

O deserto é epíteto de aridez vasta, de ausência de esperança. Relembra a provação do mergulho na imensidão inútil, a abundância do contrário ao que necessitamos. Relembra o valor de cada gota de água, o valor de cada fragmento do que não podemos ter.

A dimensão do deserto varia, não consoante a extensão de areal, antes consoante a cuidada escolha do caminho, evitando dunas que escondem desespero, evitando a perda de tempo admirando grãos de areia e catos resistentes na paisagem inóspita e com ilusões supérfluas.

O deserto não deixa, no entanto, de ser um intervalo. Um intervalo entre dois oásis que o delimitam. Não encerra em si, apesar da vastidão, o princípio e o fim, apenas um meio penoso.

Um dia habitámos um oásis. As águas corriam límpidas, frescas e cristalinas. Era justa a sua distribuição. A sombra chegava para todos, não faltando igualmente o espaço para quem quisesse o beijo do sol quente. Não era o oásis de alguns, antes o oásis de todos.

Para os doentes abundavam cuidados, para os fragilizados abundavam as pequenas ajudas essenciais, para os que se viam privados da oportunidade de contribuir com o seu trabalho chegava o apoio até novos caminhos se vislumbrarem no horizonte. Para todos sobrava a mesma quantidade de tudo, conforme a sua necessidade e mérito.

Ousaram alguns, querendo para si mais sombra, insistir que a água não era fresca o suficiente, e o oásis tornou-se escasso, esgotado pela ganância, empurrando-nos para um deserto cruel, abundante em pequenas miragens inúteis e escasso em realidades úteis.

Nesse deserto acumulavam-se pequenas fortunas escondidas em cavernas de Ali Babá, prosperavam os 40 ladrões, e a travessia do deserto tornava-se penosa. Em vez de enfrentar os ladrões que se apropriavam da abundância, passamos a lutar pelas migalhas que sobravam, pela nesga de sombra, pelas gotas de água. Em vez de usar o Abracadabra usamos injúrias, silenciosas contra os ladrões, ruidosas contra aqueles que enterram, a nosso lado, os pés na areia quente. Os ladrões, sem necessidade de se esconder, entram e saem da sua caverna cheia de tesouros, os tesouros (direitos) de todos nós, imperturbáveis.

Adoecer é, hoje em dia, um imenso deserto. Longe do oásis onde se tratava da melhor forma, e depois se dava lugar à contabilidade, atravessa-se uma aridez em que a calculadora substitui a dignidade, a matemática sobrepõe-se à justiça social e as tabelas de Excel substituem as rasgadas páginas de tantas histórias de vida.

Neste deserto não se dá a água mais fresca, antes a mais económica. A escolha de medicamentos e tratamentos obedece a demasiados cálculos e considerações, que consideram em último lugar a dignidade e conforto dos cidadãos; a fragilidade humana na doença é substituída pela árida noção de contribuinte inapto. Tudo em nome de uma poupança necessária, para que se vistam dos mais vistosos turbantes os 40 ladrões, para que haja cargos administrativos para todos os quadros políticos e seus amigos, para que haja abundância para salvar banqueiros de ocasião e pagar juros agiotas.

Penamos no deserto, sem as provações do diabo, porque nem ele percorre um deserto tão injusto. Penamos por escolha, reclamamos com quem caminha connosco e nunca com os ladrões.

Os utentes reclamam com quem cuida deles, exigindo melhores condições; exigem tratamentos mais adequados, mais conforto na dor, mais esperança na doença, mais dignidade no cuidar, mais qualidade no nascer, mais apoio no morrer. Nunca reclamam, no entanto, com quem profanou o seu direito à saúde, com aqueles que despedem profissionais de saúde, reduzem rácios de cuidados aos utentes, que limitam o uso de medicação dispendiosa, que instruem que se evitem os meios de diagnósticos.

Os médicos reclamam contra os seus utentes que exigem soluções mais breves, menor tempo de espera. Reclamam pelo uso indiscriminado dos Hospitais, pelo incumprimento de esquemas terapêuticos e abandono de tratamentos. Não reclamam contra quem induz um número cada vez menor de profissionais, quem limita os recursos para o diagnóstico, quem desinveste nos cuidados de saúde primários, tornando-os praticamente inúteis para resposta em tempo adequado, quem ceifa os apoios sociais, deixando tantos sem forma de custear medicamentos essenciais.

Os enfermeiros reclamam consigo próprios, maldizendo condições precárias de trabalho, amaldiçoando rácios desumanos e vencimentos que roçam o jocoso. Reclamam uns dos outros por pequenos lapsos, olham para carreiras e competências alheias, esquecendo-se de protestar contra governos e administrações, esquecendo-se de valorizar todas as infindáveis características valiosas da sua profissão.

Reclamam os enfermeiros do número elevado de doentes e da impossibilidade de os cuidar dignamente, esquecendo-se de se recusarem a exercer nessas condições. Reclamam por ter menos competências, esquecendo-se de lutar por cada uma delas, provando ser o profissional mais adequado para delas fazer uso. Reclamam contra diminuição da compensação das horas de trabalho noturnas, contra a erradicação de vínculos de trabalho seguros, e valores horários de remuneração insultuosos, esquecendo que a recusa de todos em aceitar as condições levaria a uma obrigatória melhoria das mesmas.

Atravessamos o deserto, demasiado preocupados em cair nas boas graças dos ladrões, contentando-nos em espreitar, ainda que por breves instantes, a riqueza da caverna. Acotovelamo-nos para ver o curso de água límpida que alguns possuem, contentando-nos com os salpicos que possam surgir. Enterramos na areia os nossos sonhos e direitos em troca de um cato espinhoso, que mais cedo ou mais tarde nos magoará a mão. Aceitamos um refrigerante quando o que queríamos era água, aceitamos refrescar a garganta por momentos, em vez de reclamar contra quem nos faz passar sede.

Entre dois oásis há um deserto. Um que insistimos em atravessar. Que se diga a palavra mágica, que da caverna saiam as riquezas, que se julguem os ladrões em vez de os idolatrar, em vez de os seguir passivamente, para que possamos encontrar um novo oásis.

Tiago Pinheiro
Sobre o/a autor(a)

Tiago Pinheiro

Enfermeiro. Cabeça de lista do Bloco de Esquerda pelo círculo Europa nas eleições legislativas de 2019
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