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Passos Coelho e os três fantasmas

O Ano I do Governo da Troika foi o Ano I da reconfiguração darwinista do contrato social.

Em 1843, Charles Dickens simbolizou nos três fantasmas que visitaram o sono do velho Ebenezer Scrooge durante a noite de Natal o julgamento social e moral das políticas liberais que conduziram à maior polarização social entre opulência e miséria de que havia memória no Reino Unido. Nessas três visitas perturbadoras, Dickens figurou a ligação indesmentível entre passado, presente e futuro como continuum de uma mesma estratégia de geração de pobreza como outro lado da acumulação de riqueza.

Não sei se Passos Coelho antecipou a visita dos três fantasmas de Dickens à sua noite de Natal. Sei apenas que, talvez para os afastar, Passos garantiu na sua mensagem aos portugueses que "ainda não podemos declarar vitória sobre a crise, mas estamos hoje muito mais perto de o conseguir" e que "estamos a lançar as bases de um futuro próspero". Se o seu objetivo era afugentar os fantasmas, foi mais um objetivo falhado. O fantasma do presente mostrou-lhe como ao milhão e meio de desempregados, aos milhões de trabalhadores com salário diminuído, aos outros tantos com precariedade para a vida inteira, enfim ao país inteiro com uma economia destruída, isto soa a ofensivo. Porque, de facto, neste Ano I de Governo da Troika sucederam-se as proclamações governamentais de fim à vista da crise. E, a cada anúncio, a única coisa que sucedeu foi um agravamento da austeridade e mais desalento nas pessoas e na economia. Foi isso mesmo que lhe disse o fantasma do futuro: "Esta é uma crise que, sendo sem fim, tem um fim claro e perfeitamente à vista. Não tem fim porque se alimenta de si própria e da criação da ilusão de que está na iminência de dar lugar à normalidade. Mas esse é o seu fim: perpetuar-se como normalidade em que o castigo da vida de muitos é tido como imprescindível para que poucos possam ter uma vida próspera."

Tal como em Ebenezer Scrooge na ficção de Charles Dickens, em Passos Coelho e na sua governação passado, presente e futuro articulam-se e conferem-se mutuamente sentido. Recorta-se um passado para legitimar um presente e antecipar um futuro. E aquilo que dá um sentido de continuidade à relação entre o passado e o futuro tem um nome: estado de exceção. É a anormalidade tornada normal para legitimar a mais anormal das ordens sociais. Foi assim que, neste Ano I de Governo da Troika, que agora termina, o discurso passado do combate às "gorduras do Estado" serviu apenas para preparar o caminho para o futuro Estado esquálido que aí vem sob o pretexto de um redesenho das funções sociais imposto pelos credores. O Ano I do Governo da Troika ficcionou um passado de esbanjamento de todos para justificar um futuro de privação da grande maioria e de reforço do poder material e político dos poucos de sempre. Pelo meio fica um presente de empobrecimento, de desmoralização e de quebra dos laços sociais vitais e dos requisitos mínimos da vida em comunidade, incluindo o da previsibilidade do Direito. O Ano I do Governo da Troika foi o Ano I da reconfiguração darwinista do contrato social.

Dickens foi simpático para Ebenezer Scrooge: dotando-o de um radical arrependimento, converteu-o à bondade e ao cuidado com os mais pobres e assim o redimiu. A História não será assim simpática com Passos Coelho. Porque não só o memorando de entendimento com a troika o impede de qualquer arrependimento como ele ostenta publicamente ser um convicto seguidor desse caminho. Ele está do lado da crise que tem um fim claro. E é esse fim que ele persegue.

Artigo publicado no jornal “Diário de Notícias” de 28 de dezembro de 2012

Sobre o/a autor(a)

Professor Universitário. Dirigente do Bloco de Esquerda
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