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O Natal onde não há chaminé

Escondemos, desesperados, o direito a pelo menos uma quadra festiva recheada, talvez apenas polvilhada, com o que se tornou miragem no restante ano: esperança.

Há menos luzes reluzentes, daquelas que enfeitam as ruas anunciando a quadra festiva, daquelas, sobretudo essas, que espelham as expectativas de cada um. Embriagados nas notícias de privatizações e vendas agiotas de bens comuns, escondemos, desesperados, o direito a pelo menos uma quadra festiva recheada, talvez apenas polvilhada, com o que se tornou miragem no restante ano: esperança.

Mais do que uma televisão de interesse público, que sirva para além de desinformar mentes frágeis e atrair carteiras já em dificuldades, mais do que uma transportadora nacional que se dedique não só à rentabilização, mas ao genuíno serviço de mobilidade dos portugueses, temos assistido ao definhar do direito à saúde, do direito à expressão livre, silenciada à bastonada, do direito à ousadia de sonhar, de perspetivar uma vida plena que seja mais do que sinónimo de sobreviver.

E embrulhado num reluzente papel de concessão em pormenores aqui e acolá, temos a prenda envenenada da hipoteca da vida de todos nós, da penhora dos direitos de tantos de nós, para pagar as dívidas de tão poucos. Resta o cheiro natalício a rabanada, a pinheiro enfeitado, a família reunida; o cheiro àquele espírito de fraternidade, bondade e caridade sazonais, que de pouco servem no restante ano, mas que subitamente consomem todos, qual encantamento houdiniano, com a vontade do abraço ao próximo.

A alegria e plenitude natalícias, não são, no entanto possíveis de ser gozadas por todos. Há, por exemplo, aqueles que dele são privados por se encontrarem doentes e hospitalizados e aqueles que têm de cuidar; aqueles que dificilmente teriam melhor cuidado do que no hospital e aqueles que dificilmente não estariam inquietos sabendo que havia alguém para ser cuidado.

Nos hospitais, mais do que a patética festa celebrada semanas antes, como ícone da tradição televisiva, vive-se o verdadeiro Natal. O Natal possível, longe das filhoses, longe dos laços farfalhudos que aguçam a curiosidade, longe das rosáceas de familiares e amigos já alegres ao estilo baconiano. Há o gemer de dor que encontra solução em alguém que leva o medicamento e as palavras de conforto, há as paragens cardio-respiratórios resolvidas pelo suor de quem deixou uma família em casa e uma fatia de bolo-rei mordida por entre o trabalho.

Há os momentos difíceis, aqueles que não cabem no presépio (quer nas versões com ou sem burro), de perda, de fim de vida, de pesar.

Há os momentos de exultação, aqueles que nenhuma estatueta envolta em palhas traduz, de alegria imensa, de nascimento de uma nova vida, de um passo dado por quem perdeu o andar, das primeiras palavras de quem perdeu a fala, da evolução positiva ainda que num pormenor, de um doente em estado crítico.

É o Natal dos esquecidos por um governo que lhes retira subsídios, que lhes degrada condições de trabalho, que não rouba, no entanto, a inabalável paixão por cuidar. É o Natal daqueles cuja consoada é a sorrir entre colegas, escondendo a lágrima de saudade por pais, filhos e amigos que se encontram junto da pilha de embrulhos coloridos. É o Natal cuja única lareira é aquele sorriso de gratidão de um idoso debilitado num rasgo de lucidez, cujo calor provém de salvar uma mãe de filhos em tenra idade.

É o Natal longe da chaminé, em que o fato carmim dá lugar a batas de médicos e ao imaculado branco dos enfermeiros. É o Natal onde as prendas surgem toda a noite, onde a cada instante se desembrulha a boa vontade, a competência e o humanismo de quem esquece por instantes a sua família, para cuidar de famílias alheias. É o Natal sem as músicas de quadra, sem as exultações ao menino nascido nas palhinhas, mas com a melodia constante das palavras de preocupação, conforto e apoio.

É o Natal dos incompreendidos; de enfermeiros que dedicam cada minuto dos 365 dias à avaliação e resposta das necessidades de quem lhes surge para cuidar, de médicos que ocupam os 12 meses à procura das melhores soluções, dos auxiliares e técnicos que se entregam à resposta eficiente a cada pedido. É o Natal de jovens de 21/22 anos (sim é com essa idade que pode começar a carreira de um enfermeiro) que carregam já nos seus ombros o peso de ver alguém falecer na consoada (e em tantos outros dias), que carregam a responsabilidade de cada pequena falha sua poder custar a vida de alguém, que carregam o fardo de gostar de cuidar em demasia num sistema de saúde que o faz demasiado pouco, tudo remunerado a 6/7€ por hora.

É o Natal passado muitas vezes na penumbra, para que adormeça a pequena criança, não a das palhinhas, mas o prematuro que inspira cuidados a cada minuto; para que adormeça o pai de família vítima de acidente, angustiado pela distância do lar; para que adormeça o idoso canceroso que encontra finalmente conforto.

Não há enfermeiras de decotes provocantes, não há enfermeiras de pilosidade facial abundante, não há médicos ou médicas de espátula e estetoscópio permanentemente na mão. Há homens e mulheres que saem de casa quando os restantes chegam. Há homens e mulheres, sobretudo enfermeiros e enfermeiras, que por valores bem menores que alguém que agrafe papéis (não ofendendo a dignidade de cada labor), lutam contra políticas governativas de corte e delapidação ao sistema de saúde, inventam soluções que resgatam a esperança por entre o desespero, entregam muita da sua felicidade pessoal em prol de uma paixão.

O Natal é quando o Homem quiser, dizem, e na verdade, é pena que o embutido espírito natalício seja tão sazonal. Aprende quem tem de abdicar do Natal marcado a aproveitar de outra forma os momentos de reunião familiar, aprende que as prendas se oferecem quando temos vontade e não quando tem de ser, aprende que qualquer altura é a ideal para o abraço fraterno, pois é sempre incerto quando haverá oportunidade do próximo.

Há chaminés nos hospitais, não daquelas que conduzem a lareiras crepitantes, não daquelas por onde seja esperado que um carmim imaculado cobrindo um abdómen volumoso desça, com prendas e lembranças. Mas mesmo sem chaminés há Natal, há dedicação e esperança na figura daqueles que cuidam, há as mais sublimes prendas no rosto daqueles para quem se fez a diferença, no último suspiro de quem se acompanhou no leito da morte, no primeiro choro vigoroso de quem acabou de nascer.

Sobre o/a autor(a)

Enfermeiro. Cabeça de lista do Bloco de Esquerda pelo círculo Europa nas eleições legislativas de 2019
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