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E dizer não, não, não! Por Ana Luísa Amaral

Eram precisas uniões, ainda que estratégicas, para exigir a mudança. Dizer “não!”, repeti-lo muitas vezes, insistir a indignação, tornar o “não” em som cada vez mais aberto, alongar-lhe o sentido, denunciar estas vergonhas e estas brutalidades.
15 de setembro de 2012 - Foto de Paulete Matos

’Não’ é a palavra mais selvagem que se pode confiar à língua.

Emily Dickinson

 

Tigre, tigre, ardendo aceso / Pelas florestas da noite.

William Blake

 

 

Era preciso uma nova retórica, ou repetições, só assim talvez se conseguisse apaziguar um pouco a indignação. Dizer “não!” muitas vezes, encher páginas com esta palavra que uma poetisa disse uma vez ser a mais selvagem que se pode confiar à língua, encher as páginas de tal maneira que a palavra transbordasse para o ar, se propagasse como onda de rádio, ou gritar “chega!”, ou “fora!”, ir buscar velhas palavras de ordem e fazê-las de novo, com pulmões de um bronze que retinisse muito alto, transformar as palavras em sons abertos, e com as palavras que temos na mão invadir ruas. Porque elas estão aqui, essas palavras, fazem parte do nosso dicionário e da nossa memória, do nosso dizer de todos os dias, uns aos outros, todos os dias as dizemos, só que noutros lugares de sentido. Neste sentido, o de agora, o de hoje deste ano a findar tão triste, tão cabisbaixo e sem sentido, fazer outra vez das palavras armas de arremesso que não se limitem a pairar, suaves, mas perfurem as florestas da noite, como disse um outro poeta, em furor e indignação pelas indignidades do seu tempo.

De que outra forma responder à violência de, ao abrir um jornal e, em cima de tanta injúria já consumada, ler da torpeza de negócios, como o da Tecnoforma, a que não só se liga o nome do primeiro-ministro mas que foram ainda geridos por um ministro que se serviu de redes de favores para montar para si próprio um curso e um perfil de estudos que verdadeiramente não fez (não fez!), um ministro que nem se demitiu nem foi demitido, mesmo depois de sobre ele ter pesado tanta polémica? De que outra forma responder àqueles que nem sequer consideram negociar uma dívida que não foi (não foi!) criada pelo povo que eles em teoria representam? Porque só em teoria é essa representação – já que esta gente fala como se estivesse do lado de uma margem iluminada, e tudo é dito e desdito (como a afirmação ridícula do primeiro-ministro, depois desmentida pelo ministro da Educação, sobre as propinas do ensino secundário) impunemente.

Este governo não representa o povo, só aqueles que com ele vive na margem iluminada. Por isso se arroga este governo de falar a partir dessa margem arrogantemente, distanciadamente, sem uma palavra de solidariedade, sem lamentos nem desculpas. Nós, os da margem de cá, desesperamos, assistimos a notícias que agudizam o costume da desvergonha e da impunidade, ou olhamos o especial fenómeno de banqueiros, antes confinados aos seus gabinetes e neles resguardados dos olhares públicos, virem agora a público semana sim, semana não, a dizer dos seus dotes politólogos, em clara demonstração da relação incestuosa entre interesses económicos e interesses políticos.

Entre os que vivem nesta margem, estão ainda assim os mais privilegiados, como eu, que tal me considero quando penso nos desempregados em desespero para conseguirem pagar casa e comida, antes ditas solidariamente pão e habitação, ou nos sem-abrigo a amontoarem-se pelas ruas, ou nos jovens sem emprego, ou nos reformados, ou nos idosos de pensões esqueléticas e voz ausente. Mas entre maior e menor privilégio na desgraça, todos somos chamados de alunos obedientes, criticados como piegas, e, se saímos às ruas, desvalorizados em número e em voz pelos do lado de lá, os iluminados pelas sacrossantas conveniências da banca, os que destituem o Estado das suas funções e obrigações de Estado e que, paulatinamente, nos vão destituindo a nós, cidadãos, dos nosso direitos de cidadania. Neste sistema em que apesar de tudo se pode falar e a que damos o nome de democracia, são pardos os rostos que nos destituem. Assim, tem-nos mostrado a História, se vão instalando as ditaduras.

Eram precisas uniões, ainda que estratégicas, para exigir a mudança. Dizer “não!”, repeti-lo muitas vezes, insistir a indignação, tornar o “não” em som cada vez mais aberto, alongar-lhe o sentido, denunciar estas vergonhas e estas brutalidades. E reclamar a paz. Não a paz do repouso, mas a paz da justiça social e da cessação da guerra que é a violência sobre todo um povo. Lembrar que o “não”, esta pequena palavra, usada todos os dias, pode habitar um lugar novo de sentido. E que sendo, no dizer poético e em metáfora, a mais selvagem, pode também ser, na vida, a única suficientemente poderosa para combater a selvajaria. E contra ela arder, acesa.

Ana Luísa Amaral, poeta e professora universitária

Artigo publicado no jornal “Público” a 10 de dezembro de 2012

Sobre o/a autor(a)

Poeta. Professora universitária na Faculdade de Letras do Porto
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