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Rasgar o memorando: é preciso um manual de instruções?

A troika ou a vida. É mesmo uma disjuntiva. A força dessa escolha leva a que hoje muitos dirigentes do PS já admitam envergonhadamente que a reestruturação da dívida é inevitável - o que o Bloco já dizia há 500 dias atrás, alto e em bom som.

Por aí se percebe que a catástrofe económica em que nos lançou a troika não deixa ninguém impune. No arco da austeridade, uma mão suja a outra e não há benzina ou jogada política capaz de limpar tanta porcaria. Ficar atento aos sinais de desconforto é metade da lição para superar essa associação de interesses.

Cuidado com os tigres de papel

No rescaldo da Convenção do Bloco, Pedro Nuno Santos dedicou uma crónica no Jornal I(21 de Novembro) ao Bloco e às suas "contradições", da sua leitura percebe-se que há uma maior que nos aponta - "Se o BE está a ser genuíno quando diz que não quer que Portugal saia do euro, então, obviamente, não pode defender que se corra com a troika do país". PNS lança esta crítica, como o próprio o refere, sob um pressuposto político, o de conseguir uma convergência entre os sectores menos radicalizados (à esquerda) dentro do Bloco e (à direita) dentro do PS. Está no seu direito e vai à luta pelas suas ideias, pena é que o faça em forma de um tigre de papel.

Aceitar a chantagem da saída do Euro como a base comum das escolhas políticas é fazer o jogo da direita e de quem dentro do seu partido quer a continuidade da via única da austeridade. Pois não há agiota que se preze que dispense uma arma moral para as situações mais aflitivas - ou os anéis ou os dedos, ou a troika ou a morte. E, como em toda a agiotagem, a chantagem da saída do Euro assenta numa ilusão, a de que o agressor é sempre mais forte não importa o quão organizadas estejam as vítimas. Acontece que a luta contra a austeridade é a resposta organizada e agregadora dos que combatem a crise do euro e o regime da agiotagem.

E o PNS sabe disso, não tivesse ele, em conjunto com cinco colegas de bancada, se abstido na proposta de reestruturação da dívida apresentada pelo Bloco a 28 de setembro (renegociação das taxas de juro e a imposição de um teto para o pagamento do serviço da dívida - rompimento com o memorando, portanto). E esta não é uma questão de "querer que Portugal não saia", mas sim de recusar a chantagem de quem representa o poder da finança, de perceber bem, em tempos perigosos como estes, as escolhas que estão ao nosso alcance, ou, em latitudes mais vastas, aquelas que nos permitam pensar o que interessa: uma solução de poder para mudar a situação. Resistir à saída do Euro colocando o foco do debate na relação de forças realmente existente é uma delas.

Renegociações há muitas

A renegociação da dívida portuguesa, se realizada no âmbito de um novo memorando com a troika, terá um resultado desastroso. É olhar para a Grécia e ver o filme das nossas vidas, menos juros com mais austeridade igual a aprofundamento da crise. A troika não foi concebida para ser de outra maneira - nos últimos 500 dias, libertou os títulos de dívida pública das mãos dos privados e possibilitou um pacto de rolo compressor capaz de assegurar um novo regime predador de acumulação - essa é a sua natureza política e eles não puseram o barco ao mar para ficar pelo caminho. Este processo, que é filho da crise da arquitetura do Euro tal qual a conhecemos, é a resposta da elite social-democrata e conservadora da Europa para assegurar a manutenção da dominação de classe. É perdedor antecipado aquele que pensar que é num gabinete de São Bento ou em Bruxelas que se irá inverter esta mecânica. Resta-nos, portanto, escolher a via estreita, complexa, dificílima mas necessária da afirmação de um rompimento com a troika, a única que poderá dar forças a um movimento social capaz de gerar alternativas políticas.

Um manual de instruções?

Como realizar esse rompimento? Tudo depende da etiquetagem que usamos. A de Seguro leva-nos para a inevitabilidade da troika, para o fantasma do financiamento interrompido. A chantagem, sempre a chantagem. Já o debate de uma esquerda séria pode nos ajudar, pelo menos, a ter menos confusões pelo caminho. Pois romper com a asfixia salarial que a Comissão Europeia procura impor aos países do sul não é abdicar de uma refundação democrática da Europa; rejeitar a jogatina do financiamento público à banca promovida pelo BCE não fecha a porta à exigência de um financiamento direto e urgente aos países sob ataque. Falamos de políticas mas também falamos de nomes - a CDU que na Alemanha elege Merkel por 98% ou o Syriza que na Grécia lidera todas as sondagens não são entidades vazias, são fruto de uma relação de forças. E perceber esse cenário é ver que o que precisamos é de um programa político e não de um manual de instruções. Pois só com uma reestruturação da dívida que substitua os títulos a cinco e dez anos por uma nova emissão vinculada às exportações e um cancelamento da dívida ilegítima pode resolver no imediato a sangria orçamental provocada pelo serviço da dívida. Em tudo o resto o Bloco apresenta as suas propostas: a nacionalização de uma banca que todos já pagamos, uma revolução fiscal que inverta o abuso, um governo de esquerda que assegura a criação de emprego.

Para esse debate, quem quiser entrar, é favor deixar a chantagem à porta.

Sobre o/a autor(a)

Sociólogo, dirigente do Bloco de Esquerda e ativista contra a precariedade.
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