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Nem fogão nem biombo de sala: o lugar da mulher não é em casa

A austeridade constitui provavelmente a forma mais direta de ataque aos direitos das mulheres, as maiores beneficiárias, e por isso mais afetadas, pelo desmantelamento dos serviços públicos.

"as mulheres são mais, têm mais longevidade. Casam e são mães (de menos filhos) cada vez mais tarde. Continuam a ser elas a assegurar a maioria das licenças de acompanhamento parental. O risco de pobreza é superior para elas, bem como a taxa de privação material. As mulheres são presas cada vez menos e as mulheres vitimas (de crimes contra pessoas) são cada vez mais. (…) Estão em maioria no ensino secundário e superior, têm vindo a aderir às novas tecnologias. Integram o mercado de trabalho, mas têm taxas de desemprego mais elevadas. Continuam a ser as principais agentes na prestação de cuidados"

(INE, Ser Mulher em Portugal 2001-2011)

O fim de semana passado ficou marcado pelas várias iniciativas organizadas em nome da luta pelo fim da violência contra as mulheres.

Segundo os dados preliminaresdivulgados pelo Observatório das Mulheres Assassinadas (da responsabilidade da UMAR), assistimos em 2012 a aumento do número de homicídios e tentativas de homicídio de mulheres, sobretudo no seio de relações de intimidade e em contextos de violência prévia. No total, somam 85 crimes.

Os assassinatos são a face mais visível, e também terrível, do machismo e da discriminação das mulheres no sistema capitalista patriarcal. Mas existem outras formas de violência (física, psicológica e moral), e outras formas de descriminação, raramente evidenciadas numa sociedade que clama ter ultrapassado (a necessidade d') as causas feministas.

O resumo da publicação do INE, Ser Mulher em Portugal, realça factos importantes sobre a realidade das mulheres em Portugal: são, somos, mais numerosas na sociedade, mais qualificadas e cada vez mais adeptas das novas tecnologias. Mas somos também as mais pobres, mais desempregadas, e mais responsáveis pelos trabalhos domésticos não remunerados e não reconhecidos.

As mulheres são muitas coisas todos os dias, na multiplicidade de papéis que desempenham e acumulam na sociedade: mães, prestadoras de cuidados, trabalhadoras e estudantes. Somos a maioria na sociedade, mas representamos uma pequena minoria dos órgãos de poder político ou económico.

D@s 11 ministr@s deste Governo, só duas são mulheres. N@s 36 secretári@s de estado, há 6 mulheres. Dos 230 deputad@s, apenas 66 são mulheres e só uma das 15 comissões parlamentares tem uma mulher como presidente. Apesar da presidente da Assembleia da República ser mulher, todos os líderes parlamentares são homens.

Se o exercício for repetido para todas as administrações e cargos executivos, tanto de instituições públicas como de grandes empresas privadas, o rácio de representação feminina não será muito maior que aquele encontrado no Governo e no Parlamento. Só há duas razões possíveis para que assim seja.

A primeira é que as mulheres não querem ou não sabem como desempenhar este tipo de funções. Assumindo que são elas a força de trabalho mais qualificada do país, este argumento perde valor para a segunda razão, a persistente descriminação no acesso a funções de poder. Esta discriminação não precisa de ser formal, pode assumir outras formas, da incompatibilidade de horários até à forma diferenciada como mulheres e homens ocupam e disputam (ou não) o espaço público.

Independentemente das suas causas mais concretas, o facto é que as mulheres ocupam [relativamente aos homens] diferentes lugares nas hierarquias sociais, políticas e económicas, o que faz com que sejam afetadas de formas diferentes pela crise.

A austeridade constitui provavelmente a forma mais direta de ataque aos direitos das mulheres, as maiores beneficiárias, e por isso mais afetadas, pelo desmantelamento dos serviços públicos. Os cortes no Serviço Nacional de Saúde ameaçam conquistas de anos, essenciais para o processo de emancipação feminina: o planeamento familiar, o apoio na gravidez ou o aborto seguro. A redução dos serviços de apoio a idosos e crianças sobrecarrega diretamente as mulheres, "as principais agentes na prestação de cuidados". O desemprego e a precariedade promovem as diferenças salariais e o aumento do horário de trabalho, e condicionam o acesso das mulheres a habitação própria. 1

Não se trata apenas do aumento do risco de pobreza, que certamente afetará mais as mulheres. Trata-se, sobretudo, do regresso em massa ao trabalho doméstico não remunerado por parte de todas as mulheres que, dispensadas pelo mercado, passam a constituir o grosso do exército de reserva.

Mas desengane-se quem interpretar este "regresso ao lar" enquanto um fenómeno meramente económico. É simultaneamente um retrocesso social e moral, aquele que substitui o Estado Social pela caridade e pelo assistencialismo, e que confere às mulheres o papel de cuidar do seu lar, dos seus, e dos pobres. A elitização no acesso à Cultura e à Educação integram este processo, ao limitar o acesso das mulheres à esfera pública.

A desigualdade que a austeridade provoca tem profundas consequências políticas: limita os direitos democráticos e promove a concentração de poder em pequenas elites financeiras e/ou tecnocratas. O autoritarismo conservador reforça as estruturas patriarcais, machistas e elitistas, onde as mulheres não têm voz ou papel.

Não existe uma austeridade "higiénica", social ou ideologicamente neutra. A austeridade, pelo seu impacto nos direitos, liberdades e formas de estruturação social, é sempre um projecto conservador. E é por isto que o seu combate não pode deixar de ser feminista.

(e é também por isto que não devemos deixar de subscrever o Protesto Feminista Anti-Austeritário)


1A titulo de exemplo, um estudo divulgado recentemente em Inglaterra demonstra que as medidas de austeridade neste país afectam 3 vezes mais as mulheres. Dos 14,9 mil milhões de libras de ajustamento, 11 mil milhões são retirados de serviços e direitos usufruídos maioritariamente por mulheres: pensões de velhice do sector público, saúde pública e cuidados infantis.

Sobre o/a autor(a)

Deputada. Dirigente do Bloco de Esquerda. Economista.
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