Costa-Gavras: “Há uma obscenidade do poder que é indignante”

23 de November 2012 - 16:23

O legendário realizador de “Z” apresentou no Festival de Salónica o seu novo filme, de enorme atualidade: a história de um banqueiro decidido a tudo em prol do dinheiro. Por Luciano Monteagudo, Página 12

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Costa-Gravas: Empurraram a Grécia a assumir dívidas enormes e, evidentemente, agora querem cobrar esse dinheiro. Foto wikimédia commons

Tem 79 anos e há 54 que faz cinema, mas conserva a energia de um principiante. Konstantinos Gavrás, mais conhecido como Costa-Gavras, nascido em Arcadia, Grécia, a 12 de fevereiro de 1933, voltou nestes dias ao seu país natal para apresentar – no Thessaloniki International Film Festival – o seu filme mais recente, “Le capital”. Um filme que logo desde o título já arrepia a pele dos espectadores gregos, submetidos nestes dias a mais e maiores medidas de ajuste por parte de um governo que vê como única saída submeter-se às exigências dos credores internacionais e à banca europeia. “Abro os jornais e vejo que o Parlamento vota medidas muito, mas muito negativas para o povo grego. É uma situação muito triste porque muitas pessoas já vivem em extrema pobreza”, diz o realizador de “Estado de Sítio” e “Desaparecido”.

A viver em França desde os seus anos de estudante de Literatura, disciplina que depois mudou pela carreira de cinema no Idhec de Paris, Costa-Gavras nunca foi indiferente à realidade política e social. De facto, aquele que ainda hoje é o seu filme mais famoso, “Z” (1969), protagonizado por Yves Montand e Jean-Louis Trintignant, foi uma denúncia da chamada Ditadura dos Coronéis que nesse momento dominava o seu país, do qual ele tinha emigrado. E o seu novo filme – proposto à moda de um thriller ambientado no mundo das altas finanças – vem pôr o dedo na ferida, sobretudo na Grécia destes dias, que acaba de atravessar 48 horas de greve geral em resposta aos cortes de salários e pensões e do orçamento do sector público.

No meio deste marasmo, Costa-Gavras, como presidente honorário da Cinémathèque Française (desde 1982 a 1987 e desde o 2007 até o presente), deu-se ao luxo de inaugurar a Cinemateca de Salónica, como um gesto de apoio à cultura e um símbolo da importância de unir o passado ao futuro. “Há um esgotamento que não é somente económico. Os jovens que abandonam o país para trabalhar noutro lugar são jovens licenciados, jovens que podem ser uma verdadeira riqueza para o país”, diz Costa-Gavras. Entrevistado pelo Página/12, o realizador explica por que escolheu fazer este filme sobre um arrivista que chega a ser a máxima autoridade de um importante banco europeu, um homem que joga a afundar os seus competidores, a despedir trabalhadores para que subam as ações da entidade, e a desviar os seus rendimentos para paraísos fiscais.

Como nasceu “O capital”?

Em primeiro lugar, por causa da situação que está a viver Europa já desde há vários anos, com esta crise que se vinha anunciando. Essa preocupação pelo tema levou-me a ler muitos materiais, entre eles um romance intitulado justamente “O Capital”, escrito por Stéphane Osmont, que era assessor financeiro de algumas das principais empresas da Europa, mas que por razões de segurança decidiu escrever sob pseudónimo. É um caso semelhante a outro livro que também me serviu de inspiração, intitulado “Capitalismo Total”, também escrito por um banqueiro europeu, um insider que conhece todos os mecanismos por dentro. E estas leituras levaram-me a pensar na possibilidade de fazer o filme, descrever esse mundo a partir do seu interior e assegurar-me de que o ia fazer com conhecimento de causa.

O título do filme é uma referência a Marx?

Em princípio, é o mesmo título da novela de Osmont, que por sua vez se refere evidentemente à obra mais famosa de Karl Marx. Nos dois casos, fala-se de dinheiro e do perigo da sua acumulação. Por isso acabámos por pedir emprestado também o título do filme a Marx: é simples e claro, compreende-se imediatamente de que se trata.

Numa cena fundamental do filme, o protagonista, durante um almoço familiar, tem um confronto muito duro com o seu pai, antigo militante socialista. Aí diz-se que finalmente “o internacionalismo triunfou”, porque agora já não há uma produção nacional, as corporações e os bancos são multinacionais...

 

É uma ironia, porque o primeiro internacionalismo entrou completamente em colapso, como todos sabemos, e o segundo também não está a correr muito bem, tal como podemos verificar nestes dias. Por isso acho que é importante encontrar uma terceira via. Essa discussão entre pai e filho dá-se a partir de um brinquedo de marca europeia mas fabricado na Ásia. Isso é bom? Para quem? Não tenho as respostas, mas parece-me necessário formular as perguntas.

Por sua vez, o protagonista tem a ideia de se desfazer dos seus rivais potenciais dentro do banco apelando a estratégias de poder que lê num livro sobre Mao, durante uma noite de insónia. Como chegou a essa ideia?

Da maneira mais simples, porque em ambos casos se trata de reter o poder, e os recursos para o fazer podem muito bem ser os mesmos. Pareceu-me interessante que o conselho diretivo de um banco funcione um pouco da mesma maneira que o bureau político do Partido Comunista Chinês. Em ambos há intrigas palacianas. A velha guarda que Mao afastou também era formada por burocratas como os que o meu protagonista, Marc Tourneille, quer afastar. E não é uma casualidade que os chineses tenham sabido criar um novo capitalismo, o capitalismo comunista, que em muitos aspetos funciona de maneira mais eficiente que o capitalismo ocidental. Em princípio é bem mais rentável, porque não há reivindicações laborais de qualquer tipo. É o velho sonho do capitalismo feito realidade.

Sendo grego de nascimento, como vê a situação do seu país?

É trágica, completamente trágica. A liderança política grega, tanto de direita como de esquerda, tem muita responsabilidade, evidentemente, pelo que se está a passar. Mas não se está a dizer o suficiente, ou de maneira suficientemente forte, que países como Alemanha, França e Grã-Bretanha empurraram também a Grécia para esta crise. Foram estes países que estimularam o endividamento grego, com o único objetivo de colocar os seus produtos e receber os ganhos. E não foi qualquer produto. A Alemanha vendeu há pouco tempo à Grécia dois submarinos de guerra de última geração. Para que precisa Grécia deles? Empurraram o país a assumir estas dívidas enormes e, evidentemente, agora querem cobrar esse dinheiro. Mas antes de vender estes produtos à Grécia e antes de lhes conceder os créditos gigantescos para poder levar a cabo estas vendas deveriam ter pensado melhor. Como se supunha que Grécia ia pagar? É um país pequeno, que nunca foi rico. Então, as responsabilidades, creio, são compartilhadas, pela liderança grega que aceitou este caminho, mas também pelas potências europeias que pensaram unicamente nos seus benefícios. O problema é que quem está a sofrer as consequências – salvo algum ministro que possa ir preso por corrupção – não são os que se enriqueceram com estes negócios, mas sim a gente da rua, a gente sem recursos, que está cada vez mais pobre e desvalida. Há uma obscenidade do poder que é indignante.

Falando da obscenidade do poder... Pensou no caso Dominique Strauss-Kahn enquanto fazia o filme? O seu protagonista também tem uma ambição sexual equivalente à sua ambição de riqueza.

Não necessariamente. Em França, todos sabíamos que Strauss-Kahn se deitava muito tarde (risos). Mas eram rumores, não era algo que saísse publicado na imprensa. Era um personagem muito influente e muito sedutor, em todos os sentidos. Mas para responder à sua pergunta, quando foi revelado o caso de DSK em Nova York nós já tínhamos começado a fazer o filme. Em todo o caso, a coincidência dá-se no mundo que retratamos.

Há uns anos o espectador comum não teria entendido o vocabulário financeiro do filme, com que agora já está bastante familiarizado. Pensa que agora há suficiente informação?

Mas ninguém sabe realmente que se está a passar. Eu também não entendo muito e as pessoas com quem falo nos bancos dizem-me que também não compreendem. Num momento do filme uma personagem pergunta a outra: “Que vendemos?” E a outra não sabe o que responder. Esta falta de informação e de interesse por conhecer as causas reais que estão por trás da crise é muito generalizada. Faz falta uma visão global. Cada um se preocupa com os seus, com a sua banca e a sua economia, mas é preciso globalizar a visão para entender por que o sistema não funciona bem.

No seu filme parece haver uma diferença entre a maneira de atuar dos bancos norte-americanos e os europeus. É realmente assim?

Na crise das hipotecas de alto risco que atravessou Estados Unidos há pouco tempo, o único banco que não executou as dívidas foi um banco francês. Por isso dizem que na Europa há outra maneira de ver as coisas, à antiga, e que são mais éticos que os bancos americanos. Eu não penso que o sejam, pelo menos não todos. Há pouco, um jovem executivo de um banco francês perdeu milhares de milhões de euros com os fundos de investimento, como se jogasse à roleta. E essa conta há sempre alguém que acaba por pagá-la. Não pode ser que um Estado democrático se dedique a resgatar esses bancos, quando há tanta gente que precisa de ajuda e que poderia beneficiar-se com um melhor investimento desse dinheiro.

Uma curiosidade... Por que escolheu para o papel do seu protagonista, que é um personagem tão sinistro, um comediante como Gad Elmaleh?

Fora quase ninguém o conhece, mas em França é realmente um dos comediantes mais populares do país, com filmes que rendem grandes bilheteiras, como “A festa de Coco”. Escolhi-o porque imaginei-o como meu protagonista e porque entendo que, quando um ator de comédia se compromete com um papel dramático, tenho a certeza de que vai dar todo de si mesmo. O próprio Gad perguntou-me, antes de aceitar, por que o tinha escolhido, e eu, como única resposta, mandei-lhe o DVD de “Desaparecido”. Quando viu a interpretação de Jack Lemmon, entendeu o meu ponto de vista. E aceitou imediatamente.

Retirado de Página 12

Tradução de Luis Leiria para o Esquerda.net