You are here

Bairro de Santa Filomena, atua a polícia onde falhou a política

O que acontece neste momento com o bairro da Santa Filomena resulta de várias geografias da exclusão e está arreigado no preconceito não só racista como do desprezo e do desrespeito para com quem é pobre e é diferente.

«É madrugada, parece estar tudo normal
Mas esse homem desperta, pressentindo o mal, muito cachorro latindo
Ele acorda ouvindo barulho de carro e passos no quintal
A vizinhança está calada e insegura, premeditando o final que já conhecem bem
Na madrugada da favela não existem leis, talvez a lei do silêncio, a lei do cão talvez
Vão invadir o seu bairro, é a polícia!»

Assim diz um excerto da letra de uma canção do grupo rap paulista, «Racionais» que relata os barulhos das botas da polícia a invadir uma favela. Muito semelhante ao que tem sido a vida das e dos moradores dos bairros sociais em Portugal. As e os mais comedidos dirão – “Mas que exagero!... Não existe situação comparável em Portugal!”. Ora, foi exatamente a mesma coisa que aconteceu na última segunda-feira, no Bairro de Santa Filomena e que acontece frequentemente nos bairros sociais em Portugal. É certo que desta vez não foi para «caçar o bandido», mas sim, para «caçar a casa do bandido». «Atacar o mal pela raiz», como dizia, entusiasticamente quando das primeiras demolições, um morador do vizinho complexo Casal da Vila Chã, que exerce uma pressão tremenda para que a Câmara Municipal da Amadora (CMA) expulse dali as e os moradores do bairro da Santa Filomena. Segundo consta, uma das promessas da C.M. da Amadora aos promotores imobiliários que construiram o complexo da Vila Chã, era «limpar o bairro de Santa Filomena». Os despejos do Bairro de Santa Filomena são um ato de eugenismo social, motivado pelo racismo contra comunidades negras que grassa na sociedade em geral e a C.M.A. ao ceder à chantagem das e dos moradores de Casal de Vila Chã (cujo blogue é um lamentável repertório de racismo ordinário), faz assim um frete ao racismo.

Na passada segunda-feira, a C.M. da Amadora mandou demolir casas no Bairro de Santa Filomena, deixando 17 famílias, cerca de 23 pessoas, entre as quais, 10 crianças e pessoas com doenças crónicas graves, sem teto e sem alternativa. As máquinas madrugaram, cercando de surpresa, pelas 7h, as casas que viriam a ser demolidas horas depois. Desta vez não foi ao fim da tarde como foi no verão passado, quando a PSP cercou e invadiu o Bairro do Casal da Mira com um aparatoso dispositivo policial que incluía tanques e com direito à abertura dos telejornais. A política de perseguição aos pobres e moradores dos bairros sociais tem oscilado entre a mediatização da perseguição social e a sua clandestinidade. Estas operações nos bairros sociais começam a resultar também na banalização da violência policial contra as minorias étnicas nomeadamente, contra ciganos e negros.

Como é sabido, a situação destas centenas de agregados familiares nos vários bairros é de uma precariedade gritante onde, de facto, uma parte significativa das pessoas ficou fora do Programa Especial de Realojamento (PER), por incúria e incompetência políticas do poder central e do poder autárquico. A maior parte das e dos moradores aufere rendimentos baixíssimos comparativamente à média nacional. O PER, concebido como um programa e uma estratégia nacional cujo objetivo principal era, para além de acabar com as barracas nas zonas peri-urbanas, garantir habitação decente às populações que viviam em condições degradantes, falhou na sua reta final ao deixar de fora milhares de pessoas.

Há uma espécie de consenso a este respeito e é por isso preciso rompê-lo: esta falha não tem apenas a ver com falhas técnicas na análise da situação que resultaram involuntariamente na exclusão de milhares de pessoas do programa. A exclusão destas pessoas do PER e a sua subsequente permanência em bairros de barracas, resulta sim da cultura da desconfiança contra o pobre e da ideologia racista que assenta na territorialização da pobreza para legitimar a segregação espacial e racial.

Na verdade, o que acontece neste momento com o bairro da Santa Filomena, tal como historicamente tem acontecido nos últimos 20 anos em quase todos os bairros periféricos, resulta de várias geografias da exclusão e está arreigado no preconceito não só racista como do desprezo e do desrespeito para com quem é pobre e é diferente. O planeamento e a gestão urbana assenta não na criação da cidade para todas e todos, mas sim no paradigma da cidade para alguns. O direito à habitação condigna que é o primeiro direito à cidade no sentido mais lato, não cabe nas políticas públicas de habitação até hoje implementadas porque não convivem bem nem com a pobreza, nem com a diferença. À segregação sócio-espacial juntam-se o preconceito e o racismo. A guetização das comunidades imigrantes conflui numa exclusão urbana que cria menos oportunidades objetivas (emprego, serviços públicos como o transporte, a saúde, educação, etc) e subjetivas (sentimento de bem estar, direito de cidadania, de pertença e acesso ao espaço público, simbólica e concretamente).

Tendo em conta que a maioria das e dos moradores do bairro ganham entre 250 e 300€ por mês e que neste momento o valor médio de arrendamento no mercado livre, na área metropolitana de Lisboa, varia entre os 269 e 450€, é mais do que evidente que as e os moradores de Santa Filomena não podem procurar solução alternativa no mercado livre de arrendamento. Portanto, a Câmara Municipal da Amadora não só falhou à sua responsabilidade política de garantir habitação condigna aos seus munícipes, como mentiu quando ventilou a ideia de que as e os moradores, ou a maior parte deles, tinham condições para encontrar solução no mercado livre de arrendamento.

Perante a sua incapacidade em responder aos problemas de habitação que afetam as e os moradores daquele bairro, a Câmara Municipal da Amadora opta pela lei da força e da violência simbólica e física, sem apresentar nenhuma alternativa. O que se passa no bairro de Santa Filomena é o espelho do fracasso da política e infelizmente: Onde falhou a política entrou a polícia.

Sobre o/a autor(a)

Dirigente de SOS Racismo
Comentários (4)