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Há ideologia nas gorduras

Um debate sério sobre "gorduras do Estado" não se esconde atrás de populismos baratos, coloca em cima da mesa diferentes visões políticas sobre o papel do Estado na sociedade.

Mesmo depois de três anos da mais violenta austeridade, o discurso das "gorduras do Estado" continua a fazer-se ouvir. Tal como os "sacrifícios", ou a "vida acima das possibilidades", as tais gorduras integram um novo léxico, moralista e conservador, criado para justificar o austeritarismo. E com sucesso. Perante o óbvio desastre da estratégia, a sua aceitação social depende da eficácia com que manipula sentimentos de culpa e apela ao senso comum.

A narrativa construída a partir deste novo léxico não é exclusiva deste Governo. Ela está profundamente embrenhada em todo o discurso do Memorando, e dos partidos que o suportam, no discurso das instituições europeias, da comunicação social e dos comentadores políticos.

Tomemos como exemplo as recentes declarações do Secretário de Estado da Administração Pública, em que apelava a um "debate sério sobre as gorduras do estado". Mais à frente na notícia ficamos a perceber a verdadeira intenção: " temos de pesar que modelo queremos, porque cortar mais 4000 milhões sem alterar a estrutura de funcionamento será bastante mais difícil". Afinal o debate não é sobre as gorduras, mas sim sobre o músculo, o próprio funcionamento do Estado.

A liberdade interpretativa associada ao conceito não é inocente. Pretende passar a mensagem de que é possível cumprir as sádicas metas orçamentais da Troika cortando apenas no que está a mais, nas despesas supérfluas, nas gorduras. Mas não é, por dois motivos.

Em primeiro lugar porque isso dependeria de uma evolução positiva das receitas do Estado, que não existe. Se compararmos os números dos últimos Orçamentos chegaremos à conclusão que, apesar do brutal aumento das taxas, o dinheiro arrecadado através dos impostos é hoje pouco maior do que era há três anos atrás. Isto acontece porque o próprio aumento da carga fiscal - criado para combater o défice -, quando associado às outras medidas de austeridade, prejudica a atividade económica de tal forma que anula o efeito inicial (o aumento da taxa).

Em segundo lugar porque, por mais que existam despesas supérfluas no funcionamento da administração pública, não há gorduras que cheguem para atingir os níveis necessários de corte na despesa. Especialmente em contexto de recessão, qualquer ajustamento desta natureza e dimensão será sempre corrosivo para a economia e implicará o desmantelamento de serviços públicos essenciais. Ao criar pobres e desempregados, ao retirar as condições para o investimento, a austeridade gera a recessão que aumenta automaticamente a necessidade de despesa pública e, logo, pressiona o défice. Sem cortar nesta despesa não é possível reduzir o défice (na dimensão exigida). Mas o próprio corte na despesa gera mais défice. O resultado é um país em que, apesar de um Estado Social reduzido a um sistema público de caridade, o défice e a dívida aumentam todos os dias.

Sendo este efeito cíclico de austeridade - recessão - défice tão óbvio, somos levados a perguntar o que é que justifica o complexo anorético deste Governo (e da Troika), que todos os dias olha se ao espelho e vê gordura onde todos vemos pele e osso. A resposta está na tal liberdade interpretativa. Aquilo que, para uma grande maioria - e certamente para o Bloco de Esquerda -, são os pilares fundamentais de qualquer Estado - Serviços Públicos Universais e Gratuitos, proteção social, etc - para este Governo representam gorduras. É essa a lógica do Secretário de Estado quando se refere à "estrutura de funcionamento", ou de uma deputada do CDS quando recentemente afirmava num debate que Portugal não podia comportar um Sistema Nacional de Saúde como aquele que temos.

As metas do défice são inatingíveis, e a Troika e o Governo estão conscientes desse facto: o propósito da austeridade não é alcançar o impossível, mas sim o caminho que se faz para não lá chegar. Quando o programa da Troika estiver concluído, com ou sem desvios, as metas do défice e da dívida estarão ainda muito longe dos seus objetivos, mas a reforma laboral estará concluída, o sistema de saúde ou de educação não será mais público ou universal, a proteção social estará reduzida a poucos, e os salários terão descido mais de 30%.

Um "debate sério" sobre "gorduras do Estado" é por isso uma contradição nos termos. Um debate sério não se esconde atrás de populismos baratos, que tanto servem a destruição do SNS como a diminuição do número de deputados (também esses "gorduras"). Um debate sério coloca em cima da mesa diferentes visões políticas sobre o papel do Estado na sociedade, as funções que deve desempenhar e a forma como deve fazê-lo.

À visão de um Estado mínimo, que fornece serviços de má qualidade aos mais pobres e garante negócios e regulações favoráveis aos mais ricos, opõe-se uma outra, que atribui ao Estado um papel interventivo na garantia e proteção dos direitos sociais, na prestação de serviços públicos e na redistribuição da riqueza.

As "gorduras" de que tanto se fala não têm existência fora do significado político que lhes é atribuído: de acordo com a primeira visão, representam o Estado Social. Para a segunda, as "gorduras" estão nas rendas aos privados ou nos benefícios fiscais aos sector financeiro.

Não deixemos que os dois debates se confundam.

Um deles centra-se em torno da redução do défice, e das metas impostas. Devemos ter bem claro, nesta discussão, que um ajustamento orçamental desta magnitude, neste contexto, não pode ser feito sem ser à custa de recessão e austeridade. Logo, não deve ser feito.

O segundo debate diz respeito ao Estado e aos serviços públicos que queremos proteger: como usar os instrumentos orçamentais de receita e despesa para garantir melhores serviços públicos, mais solidariedade, mais criação de emprego, etc. Este objetivo não é incompatível com um orçamento equilibrado no longo prazo, mas não pode estar subjugado a ele em todos os momentos.

Permitir que estes debates se diluam num discurso populista sobre "gorduras" significa retirar-lhes todo o seu peso político. E é a ausência de peso político que deixa à Troika e ao Governo o espaço de manobra para fazerem passar um golpe ideológico por uma discussão sobre gorduras.

Sobre o/a autor(a)

Deputada. Dirigente do Bloco de Esquerda. Economista.
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