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O exercício do mal

Nunca nenhum governo tinha ousado ir tão longe. Batem-nos nos pontos mais nevrálgicos do nosso corpo já ferido e doente. Batem-nos também no espírito, desarranjam-nos a alma. Ainda não nos pesaram a fúria. Estão convencidos da sua inexistência. Quando lhe sentirem o peso até vão grunhir de sobressalto.

Roubam-me deus, outros o diabo - quem cantarei

Roubam-me a pátria e a humanidade, outros ma roubam - quem cantarei

Jorge de Sena

O que mais impressiona nos tempos que nos estão a acontecer é o estarmos tão em cima da catástrofe e pensarmos que a coisa pode passar sem que tenhamos de fazer coisa alguma.

Olhando para trás, lembremo-nos que a maior parte dos judeus não saiu da Alemanha mesmo quando era evidente que um monstruoso pogrom estava em marcha; foram-se deixando ficar até que alguém os levou; que o mundo continuava na sua calma ritmada e quotidiana, face a uma Alemanha que se armava até aos dentes, até que Hitler começou a estilhaçar países e mais países transformando a Europa, esta mesma Europa que hoje se esboroa, num espaço todo roto e escaqueirado; que as pessoas, apesar da tragédia do fascismo, prosseguiam calmamente com o seu dia-a-dia, iam ao cinema, trauteavam as canções que pingavam da telefonia, almoçavam, jantavam, dançavam; que as escolas e os empregos funcionavam, interrompendo-se somente durante algum tempo, quando as sirenes tocavam num escarcéu a avisar que dos céus iam cair bombas.

É esta vida paralela à hecatombe, esta coexistência com mal à solta, esta teimosia das rotinas, esta incapacidade de decifrar a desgraça, é tudo isto em conjunto que concorre para o exercício competente do mal.

Para que o mal se exercite, se cristalize, se depure e avance são necessários alguns requisitos. Agente, alvo e ambiência ou conjuntura. Os agentes são na sua maioria os governos, normalmente representados por criaturas afins do Relvas e dos Coelhos, criaturas insignificantes e de mau carácter; o alvo é, desde sempre, essa massa multiforme a que se chama povo; a ambiência é formada pelo pensamento dominante e dominador, os média a arengar, os comentadores a bajular, o pessoal farto de os ouvir e a mudar de canal para o futebol, onde o grito do golo é dado quase em simultâneo com o corte das pensões, a raiva contra o árbitro ladrão a substituir o ódio aos que verdadeiramente nos saqueiam.

Temos neste momento um governo de garotões na gandaia dos negócios. E nós deixamos. Um governo que nos rouba e anuncia publicamente o assalto. E nós deixamos. A nossa vida a ir-se para o galheiro. E nós deixamos. A planificação do mal à nossa frente. E nós deixamos.

Deixamos.

Um governo de serventes. Um governo a dar serventia à Troika. E a Angola.

Dantes os fachos tinham aquela lengalenga obscena e colonial do Angola é nossa. Agora os cleptómanos angolanos cantam do avesso, Portugal é nosso. Temos uma economia estilo “United colors”. Um cocktail de angolanos e chineses servido em porcelana alemã. Os criados são portugueses.

E nós deixamos.

Ou pelo menos temos vindo a deixar.

No dia 7 de Setembro, antes de ir a um espetáculo musical, Passos Coelho fez um desvio e foi à televisão. Um desviozito, uma coisa sem importância. Vomitou mais desgraça. Mais mal. Convocou mais sofrimento e espera, assegura, que o povo português continuará mansamente a consentir e a concorrer para o seu próprio desastre. Relvas, do Brasil, reproduz em estereofonia, a mesma canção. Portas fala de patriotismo e diz que sim, mas que não, pondo a hipótese do talvez. Portas, o pantomineiro, foge e depois aparece, contorcionista do patuá.

O mal à solta. Nunca nenhum governo tinha ousado ir tão longe. Diminuição de salários diminutos, entrega aos patrões, aos grandes patrões disto tudo, do trabalho cansado e suado de todos nós. Diz que é a troika. Sabemos bem que a troika são eles.

Pode ser que o dia 7 de setembro tenha marcado o fim desta psicótica apatia.

Esta gente quer-nos mal. Batem-nos nos pontos mais nevrálgicos do nosso corpo já ferido e doente. Batem-nos também no espírito, desarranjam-nos a alma. Já não acreditamos em nada nem em coisa nenhuma. Assim nos pretendem. Céticos e cínicos.

Ainda não nos pesaram a fúria. Estão convencidos da sua inexistência. Quando lhe sentirem o peso até vão grunhir de sobressalto.

Sobre o/a autor(a)

Advogada, dirigente do Bloco de Esquerda. Escreve com a grafia anterior ao acordo ortográfico de 1990
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