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Canábis, da proibição à descriminalização
Apesar da canábis estar proibida de diferentes formas em muitos países europeus, de acordo com o Observatório Europeu da Droga e da Toxicodependência, pelo menos um em cada cinco europeus consome ou já consumiu canábis. Em Portugal, a entidade responsável por fazer esses estudos é o Instituto da Droga e da Toxicodependência. Os últimos dados disponíveis sobre a tendência de consumo de canábis remontam a 2007. Nesta altura estimava-se que em Portugal 11,7% da população total e 17% da jovem adulta, consumia ou já tinha consumido canábis.
Já em 2010, ao nível dos vários indicadores indirectos relativos aos mercados de “drogas” ilegais, a canábis contínua a assumir o papel principal, registando uma visibilidade crescente ao longo da década. Em relação aos processos de contra-ordenação por consumo de drogas, cerca de 71% dos processos relativos a ocorrências estavam relacionados com canábis apenas.
Em relação às condenações em tribunal por posse de canábis apenas, em 2010 representavam cerca de 41% dos casos de condenações por posse de “drogas” ilegais. Estes dados ainda não são finais, mas o IDT quando produziu o seu último relatório relativo a esta matéria, já tinha contabilizado 722 condenações por posse de canábis apenas.
1970 - O início da proibição da canábis
O ano de 1970 marcou o alinhamento Português com a política internacional promovida pelos Estados Unidos de tolerância zero contra as “drogas”. O proibicionismo que vingou enquanto ideologia dominante nesta época, transpôs-se para as leis e para as retóricas que tratam o assunto das “drogas” em Portugal.
Neste ano foi promulgado o Decreto-Lei 435/70, que aprova e transpõe para a lei portuguesa a Convenção Única sobre os Estupefacientes de 1961. E o Decreto-Lei nº 420/70 promulgado a 3 de Setembro, que revogou a legislação anterior sobre “drogas”. Neste âmbito foi criada uma lista de “drogas” sujeitas a controle, onde pela primeira vez surge a canábis, a heroína, a cocaína e o LSD, proibidos em pé de igualdade em termos de penalização, tanto em relação ao consumo como ao tráfico. No preâmbulo do Decreto-Lei justifica-se a mesmo da seguinte forma:
O consumo de substâncias estupefacientes e em geral de drogas susceptíveis de provocar toxicomania assumiu neste século uma extensão e gravidade que o tornaram motivo de especial atenção e cuidado dos Estados e de organizações internacionais. Têm-se na verdade presentes os perigos que aquele consumo comporta para a saúde física e moral dos indivíduos e a sua não rara interpenetração com fenómenos de delinquência.
A nova legislação impunha pena de prisão de 2 a 8 anos e multa de 10,000$00 a 100,000$00 a quem estivesse na posse destes produtos, classificados agora como “drogas”. Se a “droga” fosse apenas destinada ao consumo próprio a pena de prisão era de 6 meses a 2 anos e multa entre os 5,000$00 e os 50,000$00.
1983 – A criação do aparelho médico-repressivo e o aumento significativo das penas
A política única de drogas era a repressão policial e até 1983 não houve alterações significativas na lei. Com a promulgação do Decreto-Lei nº 430/83, revoga-se então a legislação anterior em matéria de “drogas”, aumentando as penas e criando um o aparelho médico-legal encarregue de recuperar o toxicodependente. Os consumidores de “drogas” deixaram ser considerados unicamente como delinquentes e passaram a ser também como doentes. O preâmbulo do Decreto-Lei confirma esta alteração no pensamento do legislador:
Considera-se censurável socialmente o consumo de estupefacientes e de substâncias psicotrópicas desde logo pela quebra de responsabilidade individual de cada cidadão perante os outros. Tal não significa, todavia, que o toxicodependente não deva ser encarado, em primeira linha, como alguém que necessita de assistência médica e que tudo deve ser feito para o tratar, por sua causa e também pela protecção devida aos restantes cidadãos. Por isso se incita ao tratamento espontâneo ou a partir dos seus familiares, criando condições de não intervenção do aparelho repressivo em tais circunstâncias.
Com esta legislação a posse de “drogas” ilegais passou a ser penalizável com prisão de 6 a 12 anos e multa entre os 50,000$00 e os 500,000$00. Se as quantidades de “droga” forem diminutas e não ultrapassem o consumo individual para 1 dia, a pena é de 1 a 4 anos de prisão e multa de 20,000$00 a 1,500,000$00.
Esta lei abria agora uma nova alternativa no campo de intervenção repressiva. Se o acusado fizesse prova médica de que era toxicodependente, a pena podia ser suspensa se aceitasse “voluntariamente” ser internado para tratamento. Com penas de prisão de 6 a 12 anos para quem esteja na posse de “drogas” ilegais, é natural que tenha crescido o número de toxicodependentes. Na perspectiva do consumidor, pode considerar-se menos mau ser-se “tratado” do que ser-se preso. Neste aspecto a lei evoluiu positivamente para uma situação menos má.
1993 – A aprovação da Lei da Droga actualmente em vigor.
Em 1993, com o objectivo de modificar o regime jurídico aplicável ao tráfico e ao consumo de estupefacientes e de substâncias psicotrópicas, é aprovada a denominada Lei da Droga através da promulgação do Decreto-Lei nº 15/93. Esta lei foi regulamentada pelo Decreto Regulamentar nº61/94 de 12 de Outubro, que adaptava o Direito Interno à Convenção das Nações Unidas contra o Tráfico Ilícito de Estupefacientes de 1988, e com a qual se procurava atingir três objectivos fundamentais:
1 - Privar aqueles que se dedicam ao tráfico de estupefacientes do produto das suas actividades criminosas.
2 - Adoptar medidas adequadas ao controlo e fiscalização dos precursores.
3 - Reforçar e complementar as medidas previstas nas convenções anteriores.
O âmbito desta Lei da Droga é bastante amplo e entre outras coisas regula: a competência fiscalizadora do Instituto Nacional da Farmácia e do Medicamento; a competência fiscalizadora da Inspecção-Geral das Actividades Económicas e da Direcção-Geral das Alfândegas; a competência da Investigação criminal; as funções do aparelho médico-legal de processamento de toxicodependentes, etc.
O preâmbulo da lei denota a continuação da lógica que presidia à legislação anterior no que diz respeito aos consumidores de “drogas” ilegais, estes continuam a ser vistos como delinquentes e como doentes:
Considera-se censurável socialmente o consumo de estupefacientes e de substâncias psicotrópicas, desde logo pela quebra de responsabilidade individual de cada cidadão perante os outros. Tal não significa, todavia, que o toxicodependente não deva ser encarado, em primeira linha, como alguém que necessita de assistência médica e que tudo deve ser feito para o tratar, por sua causa e também pela protecção devida aos restantes cidadãos.
Em conformidade com tais afirmações, o consumidor de drogas é sancionado pela lei vigente de maneira quase simbólica, procurando-se que o contacto com o sistema formal da justiça sirva para o incentivar ao tratamento, na hipótese de ter sido atingido pela toxicodependência.
Nota-se que os consumidores agora já aprecem diferenciados entre os que são e os que não são dependentes. Mas isso não implica que não continuem a ser considerados delinquentes e a estar sujeitos à respectiva pena.
A pena mínima para quem cultivar, produzir, fabricar, extrair, preparar, oferecer, puser à venda, vender, distribuir, comprar, ceder ou por qualquer título receber, proporcionar a outrem, transportar, importar, exportar, fizer transitar ou ilicitamente detiver plantas, substâncias ou preparações compreendidas nas tabelas I a III(canábis por exemplo), é punido com pena de prisão de 4 a 12 anos.
No caso do “tráfico de menor gravidade”, ou seja, se mostrar consideravelmente diminuída, tendo em conta nomeadamente os meios utilizados, a modalidade ou as circunstâncias da acção, a qualidade ou a quantidade das plantas, substâncias ou preparações, a pena é de prisão de 1 a 5 anos.
A figura do “traficante-consumidor” é punida com prisão até 3 anos, se a quantidade que a pessoa detiver não for superior ao consumo médio individual durante o período de 5 dias. Esta lei acrescenta ainda a punição da tentativa, ou seja, o simples facto de tentar obter uma “droga” ilegal é crime.
Em relação ao consumo, é punido com pena de prisão até 3 meses ou pena de multa até 30 dias. Se a pessoa for consumidora ocasional pode ser dispensado de pena, desde que a quantidade detida ou adquirida pela pessoa não for superior ao consumo individual para um período de 3 dias. Se essa quantidade for superior, é punido com prisão até 1 ano ou multa até 120 dias. Se o consumidor for punido nos termos anteriores, pode ver a sua pena suspensa se fizer prova de que é toxicodependente e aceitar tratar-se “voluntariamente”.
2001 – A despenalização de pequenas quantidades para consumo próprio.
No ano 2000 foi aprovada a Lei nº 30/2000 de 29 de Novembro, que entrou em vigor a 1 de Julho de 2001. Esta lei descriminalizou o consumo de “drogas” ilegais, nos casos em que a quantidade de produto detido não for superior ao consumo individual correspondente a 10 dias. Esta lei cria também as CDT´s, Comissões para a Dissuasão da Toxicodependência. Não deixando de estar penalizado o consumo, nestes casos o crime passa a ser “apenas” uma contra-ordenação e os infractores têm que se apresentar perante uma CDT. Nas CDT´s podem ser encaminhados para tratamento ou obter uma suspensão provisória do processo, que ao fim de 2 ou 3 anos pode ser arquivado caso não exista reincidência. Se essa reincidência existir ou se o infractor não cumprir as medidas propostas pela CDT, incorre numa coima, numa admoestação ou em alternativa numa sanção não pecuniária como: proibição de exercer profissão ou actividade; interdição de frequência de certos lugares; proibição de acompanhar, alojar ou receber certas pessoas; interdição de ausência para o estrangeiro sem autorização; apresentação periódica em local a designar pela CDT; cassação, proibição da concessão ou renovação da licença de uso e porte de arma de defesa, caça, precisão ou recreio; apreensão de objectos que pertençam ao próprio e representem um risco para este ou para a comunidade ou favoreçam a prática de um crime ou de outra contra ordenação; privação de gestão de subsídio ou benefício atribuído a título pessoal por entidades ou serviços públicos.
As CDT´s são compostas por três pessoas: um jurista designado pelo Ministério da justiça, um técnico designado pelo Ministro da Saúde e um técnico designado pelo membro do governo responsável pela coordenação da política da droga e da toxicodependência. Os membros das CDT´s são escolhidos entre médicos, psicólogos, sociólogos, técnicos de serviço social ou outros com currículo na área da toxicodependência.
A grande novidade desta legislação na perspectiva dos direitos dos consumidores de “drogas” ilegais, é que se o consumidor for apanhado na posse de uma quantidade que não ultrapasse o consumo individual para 10 dias, já não pode ser preso por isso. Outra das novidades é que o processamento das contra-ordenações é da responsabilidade das CDT´s, enquanto a execução das coimas e das sanções alternativas é responsabilidade das autoridades policiais.
A descriminalização do consumo de “drogas” ilegais só se aplica se o consumidor não detiver uma quantidade superior ao consumo médio individual para 10 dias. No caso da canábis e de acordo com legislação em vigor, isso significa:
25 gramas de canábis(folhas e sumidades floridas ou frutificadas) com uma concentração média de 2% de (Δ9-THC);
5 gramas de resina de canábis com uma concentração média de 10% de (Δ9-THC);
2,5 gramas de óleo com uma concentração média de 20% de (Δ9-THC).
2008 – O acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Na articulação da Lei da Droga de 1993 com a lei descriminalização do consumo de “drogas” ilegais de 2000, ficou alguma indefinição do que fazer nas situações em que os consumidores cultivam canábis para consumo próprio que não se destina ao tráfico. Tendo conhecimento de que nestes casos as sentenças dos tribunais faziam diferentes interpretações da lei, o Ministério Público solicitou ao Supremo Tribunal de Justiça que fizesse jurisprudência sobre esta matéria. Em 2008 o Supremo Tribunal de Justiça decidiu sem unanimidade que nestas situações se aplica o artigo 40.º, n.º 2, do Decreto-Lei n.º 15/93, ou seja, pena de prisão até 1 ano ou de multa até 120 dias.
Esta jurisprudência acaba por acentuar alguns dos aspectos contraditórios da lei em vigor. Segundo a lei actual, é um crime punível com pena de prisão cultivar canábis para consumo próprio. Isto quer dizer que para um consumidor ser abrangido pela lei da descriminalização tem que recorrer ao tráfico. Neste caso trata-se de uma contradição, a não ser que o legislador pretenda promover o mercado negro em detrimento do auto-abastecimento.
Apesar da descriminalização do consumo e da posse de pequenas quantidades de “drogas” ilegais, o paradigma legal em que nos situamos continua a ser o médico-repressivo. Ignorando que a maioria dos consumidores de “drogas” ilegais não são dependentes, a lei continua a tratar todos como doentes e/ou delinquentes.
Desde a proibição à descriminalização do consumo de canábis em Portugal, as diferentes legislações sobre o assunto são a linha que condutora do debate que se propõe. Trata-se de analisar os diferentes paradigmas que representam o percurso das políticas em relação às “drogas” em geral e à canábis em particular. Desta forma procura-se construir propostas realistas que caminhem no sentido do respeito pelos direitos dos consumidores e que invertam a política repressiva que continua a falhar em todos os aspectos.
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