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Socialismo 2012: O que falta no SNS? Orçamento? Profissionais?

Começa esta sexta-feira em Santa Maria da Feira o Fórum Novas Ideias organizado pelo Bloco de Esquerda. Na sua comunicação, que aqui publicamos, Cílio Correia contesta vários aspetos da política de Saúde do Governo PSD/CDS.
Socialismo 2012: de 31 de agosto a 2 de setembro na Escola Secundária de Santa Maria da Feira. Entrada livre.

Não sou um político independente. Não. Tenho a convicção de que ninguém o é. Tenho o coração à Esquerda. Sou socialista, laico e republicano, parafraseando Mário Soares.

Recolhi ao longo da vida a razão das coisas e da história na leitura dos clássicos de Marx, mas também na humanidade da figura de Cristo. Sou agnóstico nos dois sentidos. A leitura marxista melhorou a minha relação com a vida e a sociedade, acrescentando sempre algo ao nosso conhecimento ditado pela luta de Cristo contra os gananciosos e os vendilhões.

Estamos num momento em que podemos olhar para trás e recusar a normalização das ideias e dos comportamentos. Sempre procurámos manter um elevado sentido de ética política que nos permitiu criar um círculo de afectividades, afinidades e amizades, como a que mantemos com o João Semedo, amigo e camarada de muitas lutas.

O João Semedo não é mais um dos meus amigos.

É um amigo.

Permitam que ao passar para a página seguinte, vos traga aqui uma pequena nota pessoal: fiquei emocionado com o facto de na recente Cerimónia de Abertura dos Jogos Olímpicos de Londres 2012 e quando se fazia um percurso pela história do Reino Unido ter surgido um espaço para homenagear o National Health Service (NHS) – inspirador da criação do SNS, como afirmou o Dr. António Arnaut – sublinhado, aliás, por um forte aplauso dos presentes que se transformou assim numa imagem de sucesso, entre outras, que ajudaram a construir a grande nação anglo-saxónica e que nem sequer a mais liberal dos neoliberais, como a Srª. Thatcher, conseguiu pôr em causa.

Uma imagem vale mais que mil palavras e esta devia servir de exemplo e inspiração para o governo conservador e neoliberal que está à frente do nosso País.

Posto isto, passemos ao que nos traz aqui.

A Saúde não é um tema que se esgote. Está em permanente ebulição, porque é exactamente um dos pilares da sociedade e porque esteve sempre aberta à inovação e ao progresso, desde a criação do Serviço Nacional de Saúde.

A política de saúde do atual governo conservador-liberal (PSD-CDS) deve merecer a contestação, a crítica e a luta de todas as forças políticas de Esquerda e daqueles que ainda que próximos da matriz ideológica dos Partidos da coligação governamental, se pautam pelos princípios e valores da social democracia, da doutrina social da Igreja e que acreditam num Serviço Nacional de Saúde, universal e geral.

Não queremos ser exaustivos. Deixamos espaço para o debate e reflexão que se seguir.
Comecemos, pois, por falar de três ou quatros aspetos:

CONCENTRAÇÃO, FUSÃO E EXTINÇÃO DE SERVIÇOS

A concentração de serviços em nome da racionalidade e o consequente encerramento ou extinção de outros, só pode (deve) ser feita se existir a garantia da continuidade da qualidade dos cuidados de saúde prestados, assim como da universalidade e equidade no acesso e no transporte dos doentes em boas condições e em tempo útil.

DESLOCALIZAÇÃO DE SERVIÇOS

É fácil perceber que quando se deslocalizam serviços a pretexto da racionalização porque, entretanto, se criaram Centros Hospitalares não se está a fazer nada mais e nada menos do que repetir as receitas do “capitalismo selvagem” quando pega em setores de produção e os leva para “paraísos fiscais” ou para locais de “baixos custos” por inexistência das mínimas condições de trabalho. Daí os concursos ditados pelo “mais baixo preço” ou “ao preço da uva mijona”, como ensina a sabedoria popular.

Em paralelo, afasta-se ainda mais o cidadão/utente dos cuidados de saúde sejam eles prestados no centro de saúde, hospital ou serviços de urgência, gerando, inevitavelmente, sentimentos de incerteza e de insegurança decorrentes do aumento das despesas individuais e das famílias neste momento tão particular da vida nacional, com significativa perda de horas disponíveis e para aqueles que ainda têm trabalho.

TRANSPORTE DE DOENTES URGENTES E NÃO URGENTES

Mas será que temos, em Portugal, um sistema de transporte de doentes urgentes e não urgentes, à altura das necessidades dos cidadãos, após as modificações introduzidas pelo Ministério da Saúde, principalmente no caso dos “doentes não-urgentes”?

Se sim, não o vemos. E se há problemas foi porque houve decisões tomadas de forma negligente e ditadas por impulsos economicistas que não acautelaram nem garantiram a sua operacionalização antes de afastar os equipamentos de saúde das pessoas.

Ao não o fazer, deixaram os doentes desamparados e sem capacidade de aceder a tratamentos essenciais, designadamente os mais desprotegidos, que lhes devolviam a capacidade funcional e a afirmação como pessoas que recuperaram a sua capacidade de ganho e que deixaram de constituir um peso para os familiares.

Deu azo a ocorrências infelizes e, pior, quebrou a confiança dos utentes nos serviços. Ao romper unilateralmente o contrato dos cidadãos com o Estado colocou-os sob suspeita, em vez de se terem mantido as condições e colocado nos profissionais a avaliação das situações clínicas, caso a caso, como fazem, diariamente nos respetivos serviços.

Instalou-se, de forma deliberada, uma confusão no transporte de doentes urgentes e não-urgentes. Colocou-se os serviços de emergência (INEM) contra os bombeiros e vice-versa, lançando estes num mar de incertezas que tem levado ao estado calamitoso em que se encontram as corporações de bombeiros sem meios para acudir aos incêndios, às urgências e ao socorro a doentes não urgentes. Tudo porque faltou uma definição estratégica relativa ao transporte de doentes que vai muito para além duma mera conceção de transporte ligada ao antigo transporte por ambulâncias, mal equipadas, sem quase nenhum recursos e meios técnicos e humanos. Não se reconheceu o esforço feito na qualificação pelos bombeiros ao longo dos anos. Fez-se tábua rasa desse investimento. Não se deu o menor contributo para serenar as inquietações dos portugueses.

COMUNICAÇÃO DAS MEDIDAS E TOMADAS DE DECISÃO

A boa governação não se pode confundir com um talk show. Ninguém assume o permanente avanço e recuo de medidas nem sequer a razoabilidade das medidas e das decisões difíceis que se põem a correr com base em relatórios de ditas “comissões técnicas” que até parecem, pelo protagonismo assumido, mandatários políticos.

Foi assim nas medidas de reorganização da rede hospitalar, na reestruturação das urgências, na avaliação das condições de funcionamento das maternidades. No que toca à MAC, então, foram ultrapassados todos os limites da razoabilidade.

As “comissões técnicas” funcionam assim como um biombo do governo, sendo triste ver qualificados profissionais de saúde extravasar as suas competências técnicas, o próprio mandato das comissões, e falarem como se não houvesse um Ministério da Saúde que tem a obrigação e a legitimidade política para dizer o que pensa e quer fazer.

Fica sempre qualquer coisa no ar. Há sempre algo a corrigir. Nada está certo. Nada é definitivo. Pode ser assim, mas também pode ser o seu contrário. Vai acabar com as contratações pelo “mais baixo preço”, mas continua a publicação de anúncios de contratação pelo “mais baixo preço”. Uma vergonha.

Os órgãos intermédios de gestão são falsetes nesta orquestra. Meros ajudantes de campo. Funcionam em ligação directa com as sedes partidárias do CDS e PSD. Vejam-se as nomeações para os ACES do Norte. Por outro lado, assistem impávidos à entrada em vigor de medidas sem instruções claras e precisas sobre a sua aplicação.

Gera-se um ensurdecedor ruído de fundo e até clamor das populações. E então aparece o Ministro da Saúde, qual bombeiro a explicar e a corrigir a estratégia de “ataque ao incêndio” quando ainda não acende mais a polémica instalada, como foi na questão da MAC e na que conduziu à maior greve dos médicos dos últimos 12 anos. Até parece que se busca um desencadear de legítimas reacções de protesto dos cidadãos e dos profissionais - um barómetro para agir consoante o nível de indignação.

É pena. Conhecemos muito bem as virtudes e os defeitos do nosso sistema de saúde.

Sabemos que para consolidar as virtudes e eliminar os defeitos temos de começar por reorganizar a rede hospitalar e dos cuidados de saúde primários para obter ganhos através de uma maior racionalização de meios e garantir uma maior eficácia e eficiência na utilização dos recursos disponíveis numa área tão atreita a desperdícios como muitos outros setores de atividade. Estamos a falar de algo indispensável: garantir a sustentabilidade do SNS como eixo fundamental do sistema de saúde.

Na saúde, a percepção das mudanças é extremamente difícil. Pela complexidade da matéria, a que se junta uma natural ignorância técnica do “utente/cidadão” e pela enorme carga psicológica associada à particular vulnerabilidade do doente. Condição esta que atingirá, em algum momento, todos e cada um de nós...

É por isso que o encerramento, extinção, fusão e reorganização de serviços, de forma avulsa e sem uma estratégia definida, clara e objetiva, quanto ao futuro do SNS, que é coisa que não tem caracterizado este Ministério da Saúde, a não ser no que toca a aumentar as taxas moderadoras. Sejamos claros: o aumento das taxas moderadoras não garante a sustentabilidade futura do SNS. Correndo o risco de ser injusto tudo é apresentado, visto e percecionado como sendo mais um “corte” ditado pelas mais vis motivações economicistas.

Há que explicar aos “senhores da troika” que há muito temos a noção de que manter abertos serviços sem capacidade de resposta e que não garantem mínimos de qualidade são um atentado à saúde das pessoas?!... Não há ninguém que não compreenda quando os fins são claros e transparentes. Muito foi feito ao longo do tempo e dos anos.

Garantir a sustentabilidade do SNS não significa enfiar a ideologia no bengaleiro, como alguém já disse. Pelo contrário. A boa ideologia comporta-se tal como o bom colesterol, faz sempre falta para uma boa saúde. Mas aquela “ideologia” alucinante, ditada pela vertigem neoliberal (“mais papista que o papa”) no que se refere à saúde e à educação com que ciclicamente somos confrontados, remetem-nos para o caos, para a briga política. Inviabilizam as oportunidades de mudança. E há mudanças decisivas a fazer no reforço e sustentabilidade dentro dos serviços e com os profissionais do próprio SNS.

Os recentes comentários de alguns dos anteriores Ministros da Saúde sugeriram isso mesmo, a propósito da Greve dos Médicos e do seu quadro reivindicativo que não deixou ninguém indiferente, até mesmo os cidadãos que se sentiram representados nas reivindicações dos médicos. Só não viu quem não quis ou sofre de cataratas.

A manutenção e sustentabilidade do SNS é hoje consensual, quanto à necessidade de o adaptar a novas circunstâncias; de o flexibilizar para que não quebre, prisioneiro de uma rigidez inútil; e de lhe introduzir mais equidade e universalidade no acesso para não deixar sem resposta os mais necessitados. Um dos principais problemas é saber como se faz.

Outro é saber aplicar as medidas necessárias sem o matar nessa tentativa.

Parece que há uns quantos na Direita que nunca nutriram simpatia ou apreço pelas conquistas da saúde nos últimos trinta anos, porque sempre olharam para o SNS como um obstáculo de qualidade ao negócio fácil e ao oportunismo. Gato escondido com rabo de fora. Tecem loas ao SNS à medida que o vão espezinhando. Honra seja feita a muitos, nessa Direita ideológica, que não se reveem nesta perspectiva (e não são poucos pelas dissonâncias que vamos constatando) e que acreditam no Serviço Nacional de Saúde como um património civilizacional.

Seria um muito mau sinal para todos nós que temos o coração à Esquerda que a Direita neoliberal conseguisse descaracterizar o Serviço Nacional de Saúde, exactamente num momento em que até uma grande potência económica, como os EUA - o paradigma da medicina privada e dos seguros - está a criar um serviço público de saúde, como forma de racionalizar meios e recursos económicos e financeiros federais, sem falar nos imensos ganhos em saúde pública e nos medicamentos.

Em resposta à pergunta, “O que falta? Orçamento? Profissionais?” diríamos que falta, no essencial, uma política de saúde que defenda o Serviço Nacional de Saúde, sem estigmas ou preconceitos ideológicos, e o considere como um dos pilares fundamentais da sociedade e um património civilizacional. Tudo o resto vem por acréscimo.
 

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Termos relacionados Política, socialismo 2012
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