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Socialismo 2012: Gramsci e o RSI

Começa esta sexta-feira em Santa Maria da Feira o Fórum Novas Ideias organizado pelo Bloco de Esquerda. Um dos painéis de debate é apresentado por Ricardo Sá Ferreira e intitula-se "Gramsci e o RSI: hegemonia e discurso sobre a pobreza em Portugal".
Socialismo 2012: de 31 de agosto a 2 de setembro na Escola Secundária de Santa Maria da Feira. Entrada livre.

Gramsci e o RSI: hegemonia e discurso sobre a pobreza em Portugal

«O senso comum é o terrível negreiro dos espíritos»

- Antonio Gramsci, 1917

As representações sobre a pobreza, tal como o discurso segundo o qual estas se estruturam, estão armadilhados pelo senso-comum. Na sociedade portuguesa propagou-se a noção meritocráta, segundo a qual aqueles que possuem riqueza merecem-na, porque trabalharam para tal, relegando assim a pobreza à condição individual, cuja saída vem por vontade própria1. A esta percepção são inerentes algumas pré-noções e generalizações que caracterizam os pobres como preguiçosos e portadores de uma «dependência patológica» que resulta em desamparo moral, ameaçando os valores e a ética do trabalho. No campo das falsas representações, o Rendimento Social de Inserção (RSI) tem sido um alvo privilegiado para o bombardeamento ideológico.

A imprensa e as televisões atuam como amplificadores e instigadores de «pânicos morais»2 que transformam o imaginário em torno do RSI numa matéria indiscutível, estruturando o campo das ideias do senso comum. Com a intensificação da crise financeira, este tipo de pânicos morais são capazes, pela sua dimensão e pela sua virulência, de legitimar a inflexão das políticas sociais e a retração da intervenção estatal, redefinindo a fisionomia do Estado Social e das sociedades3. O marxista sardo Antonio Gramsci teorizou sobre o senso comum e sobre a importância da hegemonia enquanto ordenador da ideologia que agrega a sociedade.4 Gramsci distingue exercício político do poder, com o uso de mecanismos imperativos (utilização de organizações e instituições formais que são baseados no dualismo força-coerção) e direção ético-política e cultural5 que é uma hegemonia intelectual, moral e política (o consenso-consentimento).

A direita tornou-se hegemónica e detém o monopólio da direção no campo ético-político. A fabricação de representações desarticuladas da pobreza tem como objetivo criar um sentimento de insegurança e de injustiça coletivos que permitam a passagem de uma rede de segurança do Estado Social para uma rede disciplinar do Estado Penal, em que os serviços sociais se transformam em instrumentos de vigilância, controlo e disciplina das classes desordeiras. Apesar da fabricação das representações sociais parecer algo irrelevante, é o elemento justificador para os cortes brutais à assistência social, encarada como «excessivamente generosa».

A «estratégia bifurcada da incriminação da pobreza e da brutalização dos pobres» tem por objetivo impedir a criação de um sentimento de solidariedade e a instigação de um sentimento de injustiça que seja capaz de reagir ao sistema6. A pobreza não é mais um exército de mão-de-obra como preconizado por Marx, torna-se um destino isolado, neutralizado e destituído de poder. O senso comum é o menor denominador daquilo em que um grupo social, ou a maioria da sociedade, coletivamente acredita, rompendo assim com a estruturação de classes, forjando uma vocação solidarista e transclassista. Numa sociedade de classes, o senso comum em torno das representações sobre a pobreza assume um viés conservador e preconceituoso que concilia a consciência com a injustiça e banaliza as desigualdades sociais, mistificando a possibilidade de transformação.7 Além de possuir a capacidade de vulgarizar as injustiças, o senso comum reconfigura a relação de classes ao traduzir o que seria, expectavelmente, uma luta interclassista, numa luta intraclassista, endogeneizando o conflito e colocando os pobres contra os ainda mais pobres.

Estas representações sociais legitimam tanto as consequências visíveis que a exploração económica produz na estrutura social, como o recuo das políticas sociais e o seu subsequente desmantelamento. Atualmente, a batalha política passa, em grande parte, pela conquista da opinião pública como uma forma moderna de elaborar estratégias. A batalha das ideias e da hegemonia política faz-se na sociedade civil, numa guerra de posições em que os campos políticos em disputa avançam ou recuam nas trincheiras, consoante a eficácia com que imprimem as suas ideias e ganham o senso-comum para o seu respetivo campo ideológico.8 As ideias não vivem sem organização e a disputa pela hegemonia é uma disputa pela direção política das ideias9. No campo das representações, a esquerda está a perder esta batalha. A estratégia da direita é descredibilizar e punir, abrindo o campo para o declínio do estado social e a ascensão do estado brutal.

 


Notas:

1 Esta tese encaixa na tese weberiana da ética protestante do capitalismo.

2 Stanley Cohen, Folk Devils and Moral Panics, MacGibbon and Gee, 1972.

3 Loic Waquant, Prisões da Miséria: A tentação na europa. A mundialização da tolerância zero. Do estado - providência ao estado – penitência, Celta, 2000.

4 Antonio Gramsci, Selection from the Prison Notebooks, Lawrence and Wishart, , 2007.

5 João Almeida Santos in «Da gaveta para fora: ensaios sobre Marxistas», (org. José Neves): 2006.

6 Zygmunt Bauman, Em busca da política. Zahar, 2000.

7 Boaventura Sousa Santos, Introdução a uma ciência pós-moderna. Edições Graal, 1989, p. 37

8 Antonio Gramsci, Selection from the Prison Notebooks, Lawrence and Wishart, , 2007.

9 Gramsci vai buscar o conceito de hegemonia a Lenine que a definia como direação política. Lenin, Two Tactics of Social-Democracy in the Democratic Revolution, Peking, 1975.

 

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