You are here

O agosto da crise

Este tempo não tem dimensão. É só vazio e assim nos querem, vazios.

No verão os dias amanhecem determinados, decididos a andar na galdeirice de luz e calor. Estes são dias vaidosos, pedantes, pensam que só eles são bonitos, têm tiques e manias que não se aguentam. Olham para os dias de Inverno e abanam a cabeça, que pequenos, que escuros, que menores…

Pelo menos era assim antes da crise, ou melhor, antes deste governo. Agora, com uma parte substancial da população sem subsídios de férias, os dias de verão parecem iguaizinhos aos de inverno, e as férias passaram a ser uma abstracção.

O governo, o conclave da desbunda. Portas e Passos Coelho, um dueto trágico, fatídico e dramático. Um dia será flagrantemente risível. Não disse cómico. Disse risível.

A crise pretende agora deslocar a proa em direção à Espanha. O espanhol recentemente eleito vê-a chegar e diz que não a conhece de parte nenhuma. Assobia, disfarça como um pater familias conservador que é cumprimentado pela prostituta com quem dormiu no dia anterior. Auxílio, pergunta a criatura eleita, nem pensem nisso. Depois respira fundo e admite, não é nada connosco, é só para a banca. Somos nós que pagamos, mas não é nada connosco.

Governos ibericamente generosos.

A troika é uma bruxa com uma penca muito grande. Mete-a em tudo quanto é sítio.

Esta bruxa não é, contudo, uma bruxa daquelas que a inquisição mandava para a fogueira. Esta bruxa está conluiada com o Santo Ofício. A democracia é que vai ardendo aos poucos na fogueira do abuso.

Países açoitados e coitados. Países agredidos e feridos, uma grande ferida peninsular e continental. Atlântica a ferida, face à inaceitável liderança germanófila que nega os botes de salvação no meio do naufrágio. Nem uma bóia dá, quanto mais um barco. Ainda se for um submarino, vá lá que não vá. Ou dois. Dois submarinozinhos até dão jeito. Ajudam a ir mais para o fundo.

Continente europeu reiteradamente alemão. Europa reicidente. Continente doido, perdido na loucura planetária da crise financeira. Europa rasgada. Vai largando países como quem arranca botões de uma casaca. Depois há-de largar as mangas. Mais rasgões. Depois,  há-de ficar nua e mostrar  um corpo velho, a passear-se em cima de ossos partidos e a transportar o sebo ruinoso de gorduras privadas.

Por cá, no agosto de cá, este pessoal governante quando põe um ar de actor veterano ainda parece mais ridículo, porque se lhe nota logo o tique de amador.

Quando chegaram auto avaliaram-se como promissores, competentes, fantásticos, sorridentes, mãos à obra. Na própria noite das eleições emanavam estrelas dos sorrisos branqueados como no anúncio da Pepsodent. Parece que era a Pepsodent. Estavam felizes, contentes, finalmente iam escrever no país, cravar, embutir, o pensamento, a tese, o poder. Nem sequer foi a pouco e pouco que os sorrisos foram desaparecendo. Passados os flashes iniciais, começou o desatino. Como se fosse uma dor que vem de repente, não se sabe de onde. Nem sequer a reverência a quem lhes deu os votos respeitam. Neste governo é agora tudo duvidoso.

Temos o hábito, o vício da espera. Esperem aí que a situação é por demais complexa e vocês não têm neurónios suficientes para entender o que se passa. E puxam da crise e da troika e das secretas e dos números e tornam a dizer que é tudo muito difícil, estão a ver como não percebem, nós bem tínhamos avisado. Ficam depois fascinados com a nossa calma, com a nossa ausência ausente e patente, com o silêncio pesado a que nos remetemos, ou a que nos deixamos ser remetidos e dizem impantes de satisfação, que grande exemplo que estamos a dar ao mundo, à Europa, à Alemanha, que feliz está o sargento Merkel, que diferentes somos da Grécia, isto aqui é Portugal, bom aluno, bem comportado, fazemos e dizemos o que queremos e não acontece nada. Nadinha. E a seguir, não vá o diabo tecê-las, rosnam mostrando os dentes já sem as estrelas do anúncio, calados, experimentem a falar que hão-de ver o que acontece.

Os dotes vocais do primeiro-ministro vão-se aprimorando. Todos os dias nos canta uma ária de uma ópera bufa, num gorjeio apatetado. Só diz disparates. Cada tiro faz ricochete na asneira e, zuca, deflagra no pé.

Um governo anedota.

Estamos infestados de incompetência. O governo parece um grupo piolhoso que contamina tudo à volta. Solta piolhos e lêndeas e o pessoal começa todo a coçar-se numa aflição.   

Macacos manhosos calejados na pantominice fazem advertências, enviam apelos, dão conselhos, comovem-se, dançam com as palavras, elas muito agarradinhas à gorja deles, eles muito prolixos a reproduzir de cor o conto do vigário, sob a luz escandalosa de um microfone. Uma festa. Uma festa de párias.

A pior mentira é aquela que fala com verdade. Que se mistura com ela, que a abraça, que lhe suga energia, aspira à osmose e ao estado híbrido da grande farsa.

Uma mentira histórica pode levar anos a basar. Uma mentira da história só pega se disser aquilo que se quer ouvir. Quando a gente quer ouvir uma determinada coisa a mentira é fácil. Faz-nos a vontade. Há por vezes a vontade de ser enganado. E, depois, é claro, ser-se-á fatalmente esganado.

Este tempo não tem dimensão. É só vazio e assim nos querem, vazios.

Mas não pensem que isto fica assim. Vai chegar aí a história. Não tarda.

A troika que não pense que pode continuar a passear por aí montada nas bestas dos números como se fosse a GNR. A ver paisagens orçamentais e mentais. A frequentar governos com o à vontade de quem entra na casa da avó. A exigir carícias de lucros e a lambuzar-se de juros. A vandalizar tudo de tesoura em riste. No dia em que se disser basta, há-de olhar-se para o lado e perguntar, onde estás troika. Ver-se-á, nessa altura, que da troika nem sombra, a ensombrar o caminho. Há-de pirar-se à primeira badalada da meia-noite da nossa raiva.

Sobre o/a autor(a)

Advogada, dirigente do Bloco de Esquerda. Escreve com a grafia anterior ao acordo ortográfico de 1990
Comentários (2)