Como a Magna Carta se tornou uma carta menor (II), por Noam Chomsky

15 de August 2012 - 0:04

As recentes decisões do Supremo Tribunal incrementam o enorme poder político das grandes corporações e dos super ricos, golpeando com maior força ainda os vestígios vacilantes de uma democracia política operativa. Enquanto isso, a Magna Carta sofre ataques mais diretos. Por Noam Chomsky

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“Talvez o ataque mais marcante aos pilares das liberdades tradicionais tenha sido o pouco conhecido caso Holder, que a administração Obama levou ao Supremo Tribunal. Neste caso, contra o Projeto de Direito Humanitário [Humanitarian Law Project], condenou-se o projeto por ele recomendar a 'assistência material' à organização guerrilheira PKK, que tem lutado, durante muitos anos, pelos direitos dos curdos na Turquia e figura na lista dos grupos terroristas do poder executivo dos EUA. A 'assistência material' consistia em assessoria legal.” - Foto de peacearena.org

Pessoas sagradas e processos inacabados

A emenda 14 posterior à Guerra Civil garantia os direitos de pessoa aos antigos escravos, embora ainda em teoria. Ao mesmo tempo, criava uma nova categoria de pessoas com direitos: as grandes empresas. De facto, quase todos os casos relativos à décima quarta emenda que terminaram nos tribunais tinham a ver com direitos empresariais, e há quase um século já haviam determinado que essas ficções legais coletivistas, estabelecidas e sustentadas pelo poder de Estado, possuíam plenos direitos, como as pessoas de carne e osso. Na realidade, trata-se de direitos bastante mais amplos, dadas as suas escala, imortalidade e proteções de responsabilidade em relação às suas dimensões, imortalidade e proteções de responsabilidade limitada.

De acordo com os “acordos de livre comércio”, a Pacific Rim pode, por exemplo, acionar El Salvador pelo facto de o país tentar proteger o meio ambiente. Os indivíduos não podem fazer tal coisa. A General Motors pode reclamar direitos nacionais no México. Não há necessidade de se preocupar sobre o que aconteceria se um mexicano exigisse direitos nacionais nos Estados Unidos.

No plano interno, as recentes decisões do Supremo Tribunal incrementam o enorme poder político das grandes corporações e dos super ricos, golpeando com maior força ainda os vestígios vacilantes de uma democracia política operativa.

Enquanto isso, a Magna Carta sofre ataques mais diretos. Recordemos a Lei do Habeas Corpus de 1679, que proibia a “prisão em alto mar” e, com isso, o procedimento impiedoso de prisão no estrangeiro com o fim de torturar: o que hoje se chama mais educadamente de “entrega”, como quando Tony Blair entregou o dissidente líbio Abdel Hakim Belhaj, hoje dirigente da rebelião, à misericórdia do Coronel Kadhafi; ou quando as autoridades norte-americanas deportaram o cidadão canadiano Maher Arar para a sua Síria natal, para ser encarcerado e torturado, reconhecendo só posteriormente que não havia acusação alguma formada contra ele. E muitos outros, amiúde através do aeroporto de Shannon, o que provocou diversos protestos na Irlanda.

O conceito de devido processo legal ampliou-se com a campanha internacional de assassinatos da administração de Barack Obama, de modo que esse elemento central da Carta de Direitos (e da Constituição) tornou-se nulo e vazio. O Departamento de Justiça explicou que a garantia constitucional do devido processo legal, que remonta à Magna Carta, requer agora unicamente as deliberações internas do poder Executivo. O advogado constitucional da Casa Branca mostrou-se de acordo com isso. O rei João Sem Terra teria assentido com satisfação.

A questão foi suscitada depois do assassinato, a mando do presidente, por meio de aviões não tripulados, de Anuar al-Awalaki, acusado de incitar a jihad, por escrito, e de ações não determinadas. Um jornalista do “New York Times” captou bem a reação geral da elite, quando ele foi assassinato num ataque com aviões não tripulados, junto aos habituais danos colaterais. Rezava a sua manchete: “Ocidente celebra a morta de um clérigo”. Alguns levantaram as sobrancelhas pois tratava-se de um cidadão norte-americano, o que suscitava interrogações sobre o devido processo legal... consideradas irrelevantes quando se assassina concidadãos às vistas do chefe do Executivo. E irrelevante, também, de acordo com as inovações legais sobre o devido processo legal, levadas a cabo na administração Obama.

Também se deu uma nova e útil interpretação à presunção de inocência. Como informa o “New York Times”, “Obama adotou um método discutível para contar as baixas civis, afetando-o o menos possível. Com efeito, conta como combatentes todos os homens em idade militar mortos na zona de ataque, de acordo com diversos funcionários da administração, a menos que existam dados da segurança que de forma póstuma demonstrem que se trata de inocentes”. De modo que a determinação de inocência posterior ao assassinato mantém sagrado o princípio da presunção de inocência.

Seria descortês recordar as Convenções de Genebra, cimentos da lei humanitária moderna. Elas proíbem que “se leve a cabo execuções sem juízo prévio, pronunciado por um tribunal regularmente constituído, que permita todas as garantias judiciais que se conheçam como indispensáveis pelos povos civilizados”.

O caso célebre mais recente de assassinato cometido pelo Executivo foi o de Osama Bin Laden, assassinado depois de ter sido detido por 79 comandos da marinha, indefeso, acompanhado apenas pela sua esposa e com o corpo lançado ao mar sem autópsia. Pense-se o que quiser, ele era um suspeito e nada mais que um suspeito. Até o FBI concorda com isso.

A celebração neste caso foi assombrosa, mas ele suscitou muitas perguntas a respeito da recusa desavergonhada do princípio da presunção de inocência, sobretudo quando um julgamento era apenas impossível. Foram objeto de dura condenação. A mais interessante foi a de Matthew Yglesias, comentarista respeitado da esquerda liberal, que explicava que “uma das principais funções da ordem institucional internacional consiste precisamente em legitimar o uso de uma força militar mortífera por parte das potências ocidentais”, de maneira que se torna “assombrosamente ingénuo” sugerir que os EUA tenham de obedecer ao Direito Internacional ou outras condições que exigimos com retidão aos mais débeis.

Só se pode oferecer objeções táticas à agressão, ao assassinato, à ciberguerra ou a outras ações que o Santo Estado leva a cabo ao serviço da humanidade. Se as vítimas tradicionais veem as coisas de um modo um tanto diferente, isso simplesmente revela o seu atraso moral e intelectual. E ao crítico ocidental ocasional, que não chega a compreender essas verdades fundamentais pode-se desconsiderá-los como “tontos”, explica Yglesias, referindo-se decerto a mim, e eu confesso alegremente a minha culpa.

Na lista de terroristas do poder executivo dos EUA

Talvez o ataque mais marcante aos pilares das liberdades tradicionais tenha sido o pouco conhecido caso Holder, que a administração Obama levou ao Supremo Tribunal. Neste caso, contra o Projeto de Direito Humanitário [Humanitarian Law Project], condenou-se o projeto por ele recomendar a “assistência material” à organização guerrilheira PKK, que tem lutado, durante muitos anos, pelos direitos dos curdos na Turquia e figura na lista dos grupos terroristas do poder executivo dos EUA. A “assistência material” consistia em assessoria legal. A redação da sentença parecia aplicar-se de forma muito ampla, por exemplo, a debates e petições de investigações, inclusive a aconselhar o PKK a abrir mão dos meios violentos. Mais uma vez existia um espaço que dava margem à crítica, mas até isso aceitava a legitimidade do lista de terroristas do estado: decisões arbitrárias do Executivo, sem recurso.

O histórico da lista de terroristas guarda um certo interesse. Assim, por exemplo, em 1988, a administração Reagan declarou que o Congresso Nacional Africano (ANC) era um dos “grupos terroristas mais destacados” do mundo, a fim de que Reagan pudesse manter o seu apoio ao regime do apartheid e a sua depredação assassina da África do Sul e aos países vizinhos, como parte da sua “guerra contra o terror’. Vinte anos depois, o ANC saiu da lista de terroristas e hoje os seus membros podem viajar para os EUA, sem visto especial.

Outro caso interessante é o de Saddam Hussein, eliminado da lista de terroristas em 1982, para que a administração Reagan pudesse apoiá-lo na invasão do Irão. Esse apoio continuou intenso depois de encerrada a guerra Irão-Iraque. Em 1989, o presidente Bush chegou até a convidar engenheiros nucleares iraquianos para fazerem nos EUA a sua formação avançada em produção de armas, outra informação que há de ser afastada dos olhos “dos intrometidos e ignorantes”.

Um dos exemplos mais feios do uso da lista de terroristas tem relação com o povo torturado da Somália. Imediatamente após o 11 de setembro, os EUA capturaram a rede somali de assistencialismo Al-Barakaat, com base na tese de que ela financiava o terrorismo. Essa conquista foi saudada como um dos grandes êxitos da “guerra contra o terror”. Em contraste, a retirada por Washington um anos depois das acusações, por falta de fundamento oferecido, gerou pouco interesse.

Al-Barakaat era responsável por cerca da metade dos 500 milhões de dólares de remessas enviadas para a Somália, “mais de o que qualquer setor económico do país e dez vezes a quantidade de ajuda exterior que a Somália recebe”, segundo determinou uma investigação das Nações Unidas. A organização assistencialista também administrava negócios de importância, na Somália. E todos foram destruídos. O mais destacado especialista académico da “guerra financeira contra o terror”, Ibrahim Warde, conclui que, além de destroçar a economia, este frívolo ataque contra uma sociedade muito frágil “pode ter desempenhado seu papel na ascensão dos...fundamentalistas islâmicos”, outra consequência familiar na guerra contra o terror.

A própria ideia de que seja o Estado que deve gozar da autoridade de emitir tais juízos é uma grave ofensa à Carta de Direitos, como o é o facto de que se considere tal autoridade indiscutível. Se a queda em desgraça da Carta continua a ter lugar nestes últimos anos, o futuro dos direitos e das liberdades mostra-se obscuro.

Quem rirá por último?

Algumas palavras finais sobre a Carta da Floresta. O seu programa consistia em proteger a fonte de sustento da população, os bens comuns, dos poderes externos: no começo, da realeza britânica; com o passar dos anos, as cercas e outras formas de privatização por parte das corporações predadoras e das autoridades do Estado, que cooperam com elas, não fizeram mais do que acelerar e recompensarem-se em conjunto. Os danos são amplos.

Se escutarmos hoje as vozes do sul podemos saber que a “conversão dos bens públicos em propriedade privada mediante a privatização do ambiente é um modo mediante o qual as instituições neoliberais eliminam os elos frágeis que mantêm as nações africanas unidas. A política foi hoje reduzida a uma empresa lucrativa na qual se contemplam principalmente os retornos de investimentos antes da atividade que possa contribuir para a reconstrução do ambientes, das comunidades e das nações altamente degradadas. Esta é uma das vantagens dos programas de ajustamento estrutural infligidos ao continente: o enraizamento da corrupção”. Cito o poeta e ativista nigeriano Nnimmo Bassey, presidente da Amigos da Terra Internacional, na sua revelação dilacerante sobre o saque das riquezas africanas, To Cook a Continent[Cozinhando um Continente], última fase da tortura ocidental na África.

Tortura que foi planeada, sempre ao mais alto nível, deve-se admiti-lo. No final da Segunda Guerra Mundial, os EUA ostentavam uma posição de poder global sem precedentes. Não é de surpreender que tenham feito planos cuidadosos e sofisticados a respeito de como organizar o mundo. A cada região do planeta atribuiu-se uma “função” por parte dos estrategas do Departamento de Estado, encabeçados pelo distinto diplomata George Kennan. Ele determinou que os EUA não tinham interesse especial na África, de modo que devia entregar-se o continente à Europa para ser “explorado” – o termo é sujo – para a sua reconstrução. À luz da história, poderíamos ter imaginado uma relação diferente entre Europa e África, mas não há indicações de que tal coisa tenha sido em momento algum considerada.

Mais recentemente, os EUA reconheceram que também deveriam juntar-se ao jogo da exploração da África, em conjunto com os novos participantes, como a China, que se mostra muito diligente no seu trabalho de acumular uma das piores histórias de destruição do meio ambiente e de opressão das vítimas desventuradas.

Deveria ser desnecessário estender-se sobre as extremas ameaças que um perigo central das obsessões predadoras que estão a ocasionar calamidades representa para todo o mundo: a dependência dos combustíveis fósseis, que nos expõe a um desastre global, talvez num futuro não muito distante. Pode-se discutir os detalhes, mas há poucas dúvidas sérias de que os problemas sejam graves, se não incríveis, e que, quanto mais tardemos em os determos, tanto mais terrível será a herança que deixaremos às próximas gerações. Há alguns esforços para encarar a realidade, mas são os menores. A recente Conferência Rio+20 abriu com aspirações magras e concluiu com resultados irrisórios.

No entanto, a concentração de poder tem implicações nocivas para o país mais rico e poderoso da história mundial. Os republicanos do Congresso estão a desmantelar as limitadas regulações ambientais iniciadas na gestão de Richard Nixon, pois essas seriam algo como um perigo radical na cena política de hoje. Os principais grupos de lóbi corporativo anunciam abertamente as suas campanhas de propaganda para convencer a opinião pública de que não é caso para se preocupar indevidamente... com certo efeito, vide as sondagens de opinião.

Os média cooperam quando não informam sequer as previsões cada vez mais graves das agências internacionais e até do Departamento de Energia dos EUA. O informe tradicional consiste num debate entre alarmistas e céticos: de um lado estão praticamente todos os cientistas qualificados e, de outra, alguns negadores que resistem. Não tomam parte no debate um grande número de peritos, entre os que se encontram no programa de mudança climática do MIT, além de outros, que criticam o consenso científico por ser demasiado conservador e precavido, com o argumento de que a verdade sobre a mudança climática é muito mais aterrorizadora. Não é de surpreender que opinião pública se mostre confusa.

No seu discurso sobre o Estado da União em janeiro, Obama saudou as perspetivas brilhantes de um século de autossuficiência energética, graças às novas tecnologias que permitem a extração de hidrocarburetos de areias alcatroadas, xisto e outras fontes antes inacessíveis. Outros estão de acordo: o Financial Times prognostica um século de independência energética para os EUA. A informação menciona as repercussões locais destrutivas dos novos métodos. O que não se faz nesses prognósticos otimistas é a pergunta: que tipo de mundo sobreviverá a esse ataque predatório?

Na linha de frente quando se lida com esta crise em todo o mundo estão as comunidades indígenas, que sempre defenderam a Carta da Floresta. A posição mais sólida tem sido a adotada pelo único país em que os indígenas governam, a Bolívia, o país mais pobre da América do Sul, vítima, durante séculos, da destruição ocidental dos ricos recursos de uma das sociedades mais avançadas do hemisfério, antes de Colombo.

Após o ignominioso fracasso da cimeira sobre mudança climática de Copenhaga, em 2009, a Bolívia organizou uma Cimeira dos Povos, com 35 mil participantes, de 140 países, não apenas representantes de governos, mas também da sociedade civil e ativistas. Elaborou um Acordo dos Povos, que clamava por uma fortíssima redução das emissões de gases, e por uma Declaração Universal da Mãe Terra. Trata-se de uma exigência chave das comunidades indígenas do mundo inteiro. Os ocidentais sofisticados ridicularizam-na, mas pelo menos poderíamos adquirir algo da sua sensibilidade, pois é provável que eles sejam os últimos a rir, um riso lúgubre de desespero.

Artigo publicado em Guardian traduzido por Katarina Peixoto para Carta Maior

Leia a primeira parte do artigo: Como a Magna Carta se tornou uma carta menor (I)