A revisão do Plano Diretor Municipal (PDM) começou mal. O executivo de António Costa avançou para uma revisão sem preparar um balanço ou um diagnóstico do que resultou da anterior versão. Precisávamos de saber como correu, as razões que fundamentaram a revisão, os desvios, as dificuldades, os objetivos alcançados e os frustrados. Isso não foi feito. Perante esta ausência de um balanço sério e rigoroso que permitisse suster esta revisão, o executivo optou por uma revisão sem estratégia.
Um dos documentos fundamentais para este balanço e definição estratégica para Lisboa seria a Carta Estratégica 2010-2024 criada a partir do I Plano Estratégico. A perspetiva e elaboração dos eixos centrais de desenvolvimento da cidade que pretendemos ficaram adormecidas numa Carta Estratégica perdida. Iniciou-se assim uma revisão do plano diretor sem o balanço necessário e a reflexão que se impunha.
Ainda assim, e com estas deficiências, o processo de elaboração desta revisão poderia ter sido outro. Poderia ter sido participado e enriquecido por todos os lisboetas num processo aberto e incentivado. Não o foi e a escolha foi claramente assumida pelo executivo socialista. Esta revisão do PDM reduziu a participação dos cidadãos ao mínimo exigido legalmente e por isso não é um plano dos lisboetas.
Durante o período em que o PDM esteve em análise na AML, o Bloco de Esquerda insistiu várias vezes na necessidade de abrir a discussão e estende-la à população de Lisboa através de uma sessão pública que permitisse ouvir críticas, receber contributos e aceitar propostas. Infelizmente essas propostas foram bloqueadas, sobretudo pelo PS e PSD, com o argumento de falta de tempo e urgência na aprovação do documento. A democracia participativa tão apregoada pelo PS em Lisboa ficou temporariamente suspensa porque o tema era demasiado importante e demasiado urgente.
Esta visão de António Costa sobre a organização do território da cidade falha nos seus objetivos fundamentais. Quando a cidade precisava de um plano que lhe permitisse respirar, torna-la mais aprazível e mais aberta, esta revisão continua a propor índices de edificabilidade insuportáveis. Quando a cidade precisava de medidas que a protegessem ambientalmente e dos riscos naturais associados às alterações de clima que atravessamos, esta revisão enuncia boas intenções sobre impermeabilização de solos mas permite mais construção em logradouros e em caves, reduzindo a permeabilidade e aumentando os riscos associados. Quando a cidade precisava de regras claras para um repovoamento e rejuvenescimento do centro, para que voltemos a ter jovens e idosos lado a lado, independentemente da sua condição económica, este plano evoca uma “multifuncionalidade” nos usos que sabemos todos conduz a densificação de fins não habitacionais e de maior rentabilidade para os investidores. Quando a cidade precisava de uma estratégia bem fundamentada e com bases sólidas para se concretizarem alterações que urgem, esta revisão sustenta-se num programa de execução e plano de financiamento desajustado e irrealista. Com um plano de financiamento que cruza receitas não realizáveis com despesas de investimento já condicionadas noutros programas. Quando a cidade precisava de um plano ambicioso e de uma estratégia para a reabilitação e regeneração urbana, esta revisão apresenta-nos como solução um sistema de créditos de construção que para além de irrealizável, a concretizar-se definiria regras inaceitáveis de ultrapassagem de volumetrias e índices de edificabilidade que descaraterizariam a nossa cidade. É até curioso que dos pontos mais inovadores desta proposta, os créditos, seja afinal o mais obsoleto de todos. Para além do efeito perverso de atribuir benefícios de construção que ultrapassam os índices normais, estes créditos, representam no fundo a criação de valor transacionável, a criação de uma moeda que deixa de ser controlada por quem a emitiu e passa a estar ao sabor da especulação imobiliária. Esta solução de créditos de construção representa a continuidade de uma política de construção e crescimento da cidade baseada na especulação imobiliária que caracterizou as últimas duas décadas.
António Costa ao proclamar a reabilitação urbana, e o combate à degradação do edificado, como prioridade fundamental optou agora por uma solução que não responde ao problema, mas sim agrava-o. Acresce, que a premissa que sustenta esta tese, a de disponibilidade de investidores com capacidade de financiamento para obras de reabilitação urbana e construção nova, é falsa. Este mercado não existe. Está em recessão profunda. Não existe essa dinâmica e não vai existir nos próximos anos. O paradigma em que assenta esta revisão ruiu. Estamos em crise profunda. Há um empobrecimento brutal e generalizado da sociedade e de quem vive na cidade.
A reconfiguração social em curso resulta necessariamente em novos perfis de desenvolvimento urbano. Estamos a assistir a alterações drásticas em todos os níveis da vivência da cidade. Na habitação, na mobilidade, no comércio local, no investimento público e privado, no recurso a equipamentos sociais e serviços públicos, no acesso e na produção cultural, nos comportamentos ambientais e consumos energéticos, nos fluxos migratórios, em todas estas áreas assistimos a mudanças de tal forma profundas e estruturais que o planeamento da cidade vertido na atual proposta de revisão do PDM se tornou desajustada, descontextualizada e sem capacidade de resposta. Este PDM agora aprovado trata de uma Lisboa do passado e não do futuro. Esta revisão do PDM chegou atrasada e já se tornou anacrónica.