Sassetti tinha uma aura muito forte, uma maturidade impressionante

porLuís Leiria

Carlos Barreto (contrabaixo) e Alexandre Frazão (bateria), integrantes do trio de Bernardo Sassetti durante quase 15 anos, evocam o pianista falecido prematuramente e homenageiam a pessoa séria, bem humorada, competente e multifacetada.

29 de May 2012 - 19:29
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Carlos Barreto e Alexandre Frazão: comunicação era quase telepática.

No mail que lhes mandara, arriscava-me a pedir uma entrevista aos dois em simultâneo se, “por milagre”, pudessem acertar uma hora conveniente a ambos. Um homem de esquerda deve acreditar em milagres?

Bem, o que é certo é que quando já desesperava por uma resposta, eis que chega o tão ansiado mail, propondo o encontro num bar da Parede. Mas foi só quando comecei a entrevista que compreendi que não se tratava de milagre algum. O Carlos e o Alexandre estão tão habituados a tocar juntos, a dialogar pela música, que a entrevista em simultâneo fez todo o sentido. A falar criam uma dinâmica semelhante à interação do trio, cada um acrescentando ao que o outro diz, dando uma achega, lembrando-se de mais uma ideia, passando a palavra ao outro.

Estava a contar com uma certa formalidade da parte deles, talvez influenciado pela postura algo solene que o trio costumava adotar, que no fundo tinha a ver com a música mais introspetiva e com a roupa preta que muitas vezes vestiam. Mais uma vez me enganei: pessoas imediatamente calorosas, abertas, bem humoradas, a entrevista foi um prazer – e para além dela ficou a promessa de manter contacto. Pena que o pretexto para a conversa fosse tão trágico. Mas a evocação e a homenagem ao Bernardo Sasseti acabou por ser semelhante ao que ele foi em vida: séria e, mesmo dadas as circunstâncias, bem humorada. (L.L.)

O Bernardo Sassetti costumava dizer que o trio era uma parte fundamental da vida dele. Como é que o Carlos e o Alexandre viam o Bernardo e o trabalho do trio?

Alexandre Frazão: Começas tu, que conhecias o Bernardo há mais tempo, eu só o conheci quando vim do Brasil em 1987....

Carlos Barreto: Eu também foi por essa altura que o conheci... Começámos a trabalhar com ele em 1997, faria agora 15 anos. Trabalhar com ele foi fantástico desde o início. Tinha uma aura muito forte, apesar de ser muito jovem, era um músico que já tinha uma maturidade impressionante, era muito sério em tudo o que fazia. Muito sério, mas com muito sentido de humor ao mesmo tempo, o tempo que passávamos a ensaiar era sempre um tempo interessante para nós, não custava nada a passar. Ensaiávamos e aquilo parecia uma brincadeira.

Alexandre Frazão: Era incrível, e muitas vezes era música difícil, mas não parecia tão difícil devido à maneira como ele explicava e à maneira como nós a apanhávamos, tornava-se fácil.

Carlos Barreto: Evidentemente que depois, com o andar da carruagem, conforme os anos iam passando, cada vez ele precisava de dizer menos coisas, era quase telepática a forma como as coisas se desenvolviam nos ensaios como nos concertos. Era um work in progress muito natural. Não encontrei uma relação semelhante em mais grupo nenhum, talvez só no meu trio, com quem eu também tenho uma relação com os meus músicos muito chegada... Mas isto parte tudo de uma grande amizade que se foi desenvolvendo.

Em poucas palavras: o que era o Bernardo Sassetti?

Alexandre Frazão: Em poucas palavras é difícil, porque era muitas coisas. Era uma pessoa muito fácil, mas muito complexa também. Muito talento, muitas qualidades...

Carlos Barreto: Era um tipo fora de série, brilhante. Em termos artísticos era uma pessoa brilhante.

Alexandre Frazão: Não falhava naquilo a que se propunha fazer, fosse para trio, fosse nos arranjos, para ele aquilo era fácil, batia tudo certo.

Nos concertos, como era a interação entre vocês?

Carlos Barreto: Há o elemento de improvisação, havia muito campo para a improvisação. Claro que há a parte escrita, mas os temas do Sassetti tinham sempre algo que nos permitia no próprio momento dialogarmos uns com os outros. Chamaríamos a isto de algo coletivo quando, por exemplo, o piano está a fazer o solo dele, e nós estamos a acompanhá-lo mas não só a acompanhar, estamos também a intervir no discurso dele. E ele reagia também, ele aceitava este diálogo.

Alexandre Frazão: Ele queria, não só aceitava, como puxava pela nossa personalidade musical, queria que ela viesse à tona, cada vez mais, puxava por ela. Quanto mais Barreto, quanto mais Frazão – era isso mesmo que ele queria.

Portanto, ao fim de 15 anos de atividade, isso já devia funcionar muito melhor...

Alexandre Frazão: Sem palavras, até; bastava sentarmo-nos para tocar e aquilo acontecia.

Carlos Barreto: Muitas vezes, íamos para os concertos sem ensaios nem nada. Diretos para o palco... Teste de som e concerto. O que sair, saiu.

Acho curioso que o Sassetti escreveu que mudou da música clássica para o jazz quando ouviu pela primeira vez o Bill Evans. No entanto, as primeiras composições que grava são cheias de sons latinos que têm pouco que ver com o Evans. O primeiro CD realmente “evansiano” é o CD “Nocturno”. Por que foi assim?

Alexandre Frazão: Acho que ele precisava daquela primeira fase mais latina para entender melhor esta linguagem rítmica. E ele percebia-a muito bem, e falava-a autenticamente. Foi uma fase.

Carlos Barreto: O que se sabe é que ele descobriu o jazz via Bill Evans, que o estudou. Mas na sequência disso, estudou todos os pianistas, todos os grandes músicos de jazz, e depois enveredou, no início da carreira, para o latino, afro-cubano... Mas depois foi evoluindo para outros estilos também.

Como veem a música de cinema, a que ele se dedicou tanto?

Alexandre Frazão: Era uma faceta que ele gostava de explorar também, e tinha muito jeito. A música dele tinha muitas imagens. Foi um componente natural ele compor para cinema. E tinha muito gosto nisso também. Era um grande fã de cinema, sabia tudo. Não só os grandes realizadores, mas quem era a equipa... Tinha uma cultura geral impressionante.

Carlos Barreto: Sim, para além da música ele interessava-se também pela imagem, pelo cinema, pela fotografia, pelo desenho, pela pintura... Era um tipo multifacetado. Desenvolveu muitas coisas em todas essas áreas. É impressionante o que ele deixou de música para filmes, mas ele próprio também estava a realizar, queria fazer um filme e realizou muitos vídeos para apoiar a parte musical do trabalho dele, tirou muitas fotografias para capas de discos, até de vários outros músicos.

Alexandre Frazão: O último disco dos TGB, por exemplo, a fotografia de capa é dele...

Posso pedir-vos para escolherem uma música do trio, das vossas preferências?

Carlos Barreto: Eu escolho o “Olhar”, por várias razões. Já tínhamos gravado essa música num disco meu – o título do disco ficou “Olhar”, e depois gravámos também no “Nocturno”.

Alexandre Frazão: Eu escolho o “Time for Love”, o primeiro tema do “Nocturno”. Curiosamente não é um tema dele, mas eu acho que aquela atmosfera criada ali tem a ver com tudo aquilo que se passou a seguir. Até o sítio onde gravámos esse disco, Belgais, aquilo tudo tinha essa magia... Pode ter sido por acaso, eu quero acreditar que não, que ele sabia que era isso que ia acontecer, e não era só por causa dos pianos fantásticos da Maria João Pires que ele tinha à disposição, mas não era só isso: também pelo espaço todo aquele ambiente... E as coisas foram acontecendo facilmente. Os temas foram saindo. Ensaiámos um bocadinho antes, na casa dele, e depois fomos para Belgais e foi fácil.

Carlos Barreto: Houve muitos temas que foram ensaiados direto lá, fazíamos uma passagem, e depois gravávamos...

Ele dizia que gostava muito da frescura do 1º take.

Carlos Barreto: Isso normalmente é uma coisa que todo o músico de jazz gosta. O 1º take é o que fica mais fresco.

E é mesmo?

Alexandre Frazão: Às vezes, às vezes...

Carlos Barreto: Normalmente sim.

Alexandre Frazão: Se for uma música muito complexa, é melhor passar mais vezes... Mas eu acho que a atenção no 1º take é mais fresca.

Carlos Barreto: Porque depois de gravar, aquela energia que gastaste vais ter de repetir. Se tiveres de fazer um 2º take...

Alexandre Frazão: … estás a pensar no que pode ficar melhor...

Carlos Barreto: É mais cansativo.

E agora, quais são os vossos planos? O trio deve ter deixado um vazio enorme...

Carlos Barreto: Cada um de nós também está noutros projetos. Digamos que o Sassetti era um dos pilares – pelo menos na minha atividade profissional...

Alexandre Frazão: … na minha também!

Carlos Barreto: … mas tenho outros, tenho o meu próprio trio, e outros projetos. Mas o trio do Bernardo Sassetti era um dos mais queridos que eu tinha.

Alexandre Frazão: É igual para mim, tenho o projeto do TGB (Tuba, Guitarra e Bateria), mas tínhamos um carinho muito especial pela música e pela nossa amizade, pela relação especial que criámos, pelas viagens, por tudo aquilo que convivemos.

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