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Pingo amargo

A campanha de descontos da Jerónimo Martins em 1 de maio simboliza toda uma cultura da nossa elite empresarial.

A retórica da crise como uma oportunidade é perversa. Há perguntas a que ela deliberadamente não responde: é uma oportunidade para quem? É uma oportunidade para fazer o quê? Sem nomes e sem políticas, a "oportunidade" da crise é uma peça a leiloar, comprável por quem dá mais.

Ponhamos então nomes às coisas. O grupo Jerónimo Martins decidiu furar a greve dos seus trabalhadores contra o desrespeito do 1.º de Maio como dia feriado e festivo, aliciando-os com o pagamento do dia em triplo e aliciando os consumidores com descontos de 50% para compras superiores a cem euros. A crise foi uma oportunidade para a Jerónimo Martins - oportunidade para sinalizar um radical desprezo do 1.º de Maio como celebração do trabalho e de quem trabalha, oportunidade para dar mais força à desregulação do tempo de trabalho e das condições de trabalho e oportunidade para fazer da penúria da grande maioria razão de negócio em larga escala. Tal como a globalização tinha sido uma oportunidade para a Jerónimo Martins se estabelecer na Polónia, onde as acusações de não pagamento de horas extraordinárias, represálias contra os trabalhadores, dumping, entre outras, abundam. E tal como a livre circulação de capitais tinha sido uma oportunidade para a Jerónimo Martins fazer deslocar parte crucial das suas responsabilidades fiscais para a Holanda.

A campanha de descontos da Jerónimo Martins em 1 de maio simboliza toda uma cultura da nossa elite empresarial. Ela tem três traços essenciais. Em primeiro lugar, nessa cultura chama-se "gestão estratégica" ou outras coisas do género aos estratagemas para conseguir lucro fácil. Há num anúncio da cadeia Pingo Doce uma fala assim: "Já parou para pensar por que é que existem descontos? O desconto só existe para se poder baixar um preço que estava caro. Se ele já estivesse barato não era preciso descontos, não é verdade?". Notável, não é? A gente segue o raciocínio do anúncio, para para pensar e chega a uma conclusão: de duas uma - ou o Pingo Doce vendeu os seus produtos abaixo do custo no dia 1 de maio, num comportamento ilegal grosseiro de violação das regras da concorrência ou pratica margens de lucro de 50% nos outros 364 dias do ano. Sejamos benignos, apesar de tudo: o que aconteceu no 1.º de Maio foi uma operação ilegal contra a concorrência e para pressionar os fornecedores. Perversamente benigno será o poder político se não sancionar exemplarmente esta ilegalidade.

Em segundo lugar, nessa cultura a compreensão do trabalhador como titular de direitos é tida como um desvio ideológico passadista e substituída pela apologia de uma "responsabilidade social" feita de distribuição de sobras que minora a raiva e o desespero mas mantém incólume tudo o que os produz. Em abril, Soares dos Santos revelou que 1500 dos funcionários da Jerónimo Martins têm os salários penhorados por dívidas e alguns até roubam nas lojas Pingo Doce para matar a fome. Isso fê-lo rever a política de salários do grupo e o abuso de recurso à precariedade? Não, num gesto magnânimo, prometeu ajuda em géneros. Eis a responsabilidade social em todo o seu esplendor.

Em terceiro lugar, essa cultura é avessa ao contrato celebrado entre iguais. Por isso, ela investe na erradicação da contratação coletiva e remete tudo para a relação individual entre trabalhador e entidade patronal, onde a desigualdade de poder se encarrega de tornar "naturais" e "aceitáveis" tratamentos de abuso e violações grosseiras da dignidade de quem trabalha.

Sim, a crise é uma oportunidade. A crise aliás não é outra coisa senão isso: a oportunidade aproveitada para desfazer o contrato social e transferir para os donos de Portugal um valor crescente do rendimento de quem trabalha.

Sobre o/a autor(a)

Professor Universitário. Dirigente do Bloco de Esquerda
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