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Austeridade. E se for para sempre?

Todo o conteúdo do novo tratado europeu clama por uma revisão e emenda dos Tratados Europeus, garante último do poder (ainda que mínimo) dos parlamentos europeu e nacionais.

A insistência europeia na implementação de mecanismos reforçados de controlo orçamental parece roçar a insanidade. A austeridade precipitou a segunda grande depressão, exilou as periferias e criou um exército europeu de desempregados, sem resolver um único determinante da crise. A receita neoliberal, para além de anti-social, como sempre foi, é recessiva e, sobretudo, antidemocrática.

A contradição é evidente, mas nem por isso auto-solucionável: os mecanismos de que dispõe o capital para retomar as suas taxas de acumulação são induzidores da mesma crise que, no limite, limita a acumulação e destrói capital. Por outro lado, porque implica um ataque derradeiro aos rendimentos do trabalho e a apropriação dos sectores até agora mantidos fora da esfera mercantil (o Estado Social), a estratégia neoliberal tornou-se inerentemente incompatível com as fundações das democracias europeias.

O processo de integração monetária europeia é o reflexo do paradoxo.

Em menos de um ano, as morosas e burocráticas instituições europeias fizeram passar – sempre sem entusiasmo ou alarido – as leis, os tratados e pactos que consagram o consenso. Redução salarial para aumentar a competitividade e austeridade para as contas públicas laxistas. Sem dúvida, como admitiu Durão Barroso, uma estratégia pouco capaz de ganhar eleições: “precisamos, mais do que nunca, da autoridade independente da Comissão para propor e levar a cabo as ações que os estados membros deveriam cumprir. Vamos ser francos, os governos não conseguem fazer isto por eles mesmos. Tão pouco pode ser conseguido pela negociação entre governos”.

Depois da aprovação do Semestre Europeu, que obriga os governos a submeter os Orçamentos nacionais ao escrutínio da Comissão Europeia, e do Six Pack, que reforça os mecanismos sancionatórios aplicáveis os países que violem as regras do Pacto de Estabilidade e Crescimento1, a Comissão e o Conselho aprovaram o novo Tratado2, ainda não ratificado pelos parlamentos nacionais, conhecido como “Fiscal Compact”.

E vale a pena demorar na descodificação deste último.

O “Fiscal Compact”

De assinalar a rapidez do processo até à assinatura do tratado, por 25 dos 27 estados membros, na última Cimeira Europeia. No total, entre o acordo inicial e a assinatura final do documento, passaram-se apenas 2 meses, o equivalente a 2 horas no fuso horário de Bruxelas.

No essencial, o acordo estabelece um novo limite de endividamento, de força constitucional, e introduz um mecanismo automático de austeridade.

Para respeitar o novo limite, os estados membros deverão apresentar, no médio prazo, um défice estrutural inferior a 0,5% do PIB (embora não se conheça ainda o significado de “défice estrutural”). Adicionalmente, os países cuja dívida pública exceda os 60% deverão obrigatoriamente reduzi-la a uma taxa de 1/20 por ano (sobre os 100% da dívida).

Em caso de desvios deste objetivo, será desencadeado um mecanismo automático de correção, cujos contornos estão ainda por conhecer, mas que serão definidos unicamente pela Comissão Europeia. O pacto delega ainda na Comissão a definição do “papel e independência das instituições responsáveis ao nível nacional pela monitorização e observação das regras”.

A implementação, quer do limite de endividamento, quer do mecanismo de correção, ficará sujeita ao controlo judicial do Tribunal Europeu de Justiça, que poderá agir em caso de denúncia, quer da parte da CE como de qualquer outro estado membro, aplicando uma multa até 0,1% do PIB.

Extingue-se desta forma a possibilidade de os diferentes Estados definirem os seus orçamentos de acordo com princípios que não o da consolidação das contas públicas, independentemente da sua legitimidade democrática. Sem margem para políticas contra-cíclicas, os Governos nacionais não terão mais para oferecer que a austeridade decidida pela Comissão.

Quando a lei é fora da lei

A austeridade deve impor-se a todos os outros contratos, e por isso o Tratado prevê a obrigatoriedade de os estados-membros incluírem o limite de endividamento das suas respetivas constituições (ou lei equivalente).

Mas a perversão maior surge quando a lei que se quer sobrepor à lei é, ela própria, ilegal. Com efeito, todo o conteúdo deste pacto clama por uma revisão e emenda dos Tratados Europeus, garante último do poder (ainda que mínimo) dos parlamentos europeu e nacionais. Acontece, no entanto, que o “Fiscal Compact” se encontra sob a lei internacional.

A manobra é inteligente. Apesar de todos os contratantes serem membros da UE, o Pacto estabelece-se como qualquer outro acordo internacional, de forma a evitar os constrangimentos democráticos e constitucionais previstos nos Tratados Europeus. Tem, por exemplo, a enorme vantagem de evitar a cláusula que obriga as revisões dos tratados europeus a serem ratificadas de acordo com os princípios constitucionais dos diferentes países. Na Irlanda, tal como em outros países, o princípio constitucional é o de que todas as alterações aos tratados europeus devem ser referendadas.

Por outro lado, por ser lei internacional e não europeia, basta a assinatura de 12 países (e não de todos) para o Pacto ser aprovado. E para o caso de o malabarismo legal não ser suficiente para convencer os povos europeus (e normalmente não é), o Pacto garante o derradeiro argumento: só os países assinantes poderão ter acesso ao mecanismo europeu de estabilidade.

No demais, o problema pode ser colocado da seguinte forma: os tratados europeus não conferem, a não ser que seja alvo de revisão, quer à Comissão Europeia, quer ao Tribunal de Justiça Europeu, os poderes que lhes atribui o novo Tratado – a Comissão que determina os mecanismos de austeridade e vigia a dívida torna-se então numa administração executiva autónoma, que não responde a nenhum outro poder, democrático ou judicial.

Até que a morte os separe

A grande diferença entre um contrato de casamento e o Tratado do Fiscal Compact é que a frase “até que a morte nos separe” apenas se aplica ao segundo, que não prevê qualquer cláusula de cancelamento. E um tratado que não prevê as condições que estabelecem o seu fim ou denuncia, é eterno. Ainda está em discussão jurídica, mas isto poderá querer dizer que a renúncia unilateral do contrato, por parte de um país, não extingue as obrigações estabelecidas, garantindo aos restantes países contratantes o direito de imposição de medidas sancionatórias. Trata-se de dotar a austeridade de “validade eterna”, citando as palavras da Chanceler alemã Angela Merkel .

Um referendo pela democracia

A obsessão do governo alemão – e de vários governos europeus - pelo conservadorismo orçamental e a austeridade são aparentemente suicidários para o seu próprio modelo de crescimento neo-mercantilista. A não ser que a estrutura das suas exportações se altere no curto prazo, o empobrecimento dos trabalhadores europeus, especialmente os das periferias, terá um impacto negativo na balança comercial alemã. Pode também estar em jogo uma alteração de estratégia comercial com vista à promoção da competitividade das exportações extra comunitárias por via dos baixos salários.

Por ideologia, estratégia de competição, ou ambas, são as garantias formais de democracia que se jogam neste momento a nível europeu.

Na Irlanda como em Portugal, a exigência de um referendo a este tratado trata-se pois, não apenas de uma escolha económica sobre limites de endividamento, mas de uma pronunciação sobre direitos e instrumentos democráticos básicos a nível europeu e nacional.


1 Que até agora exigiam 60% de Divida Pública e 3% de défice.

2Treaty on stability, coordination and governance in the Economic and Monetary Union”

Sobre o/a autor(a)

Deputada. Dirigente do Bloco de Esquerda. Economista.
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