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Um domingo de luta no Curdistão ou um instantâneo da "democracia turca"

A Nação Curda celebrou domingo a sua festa do Newroz, a sagração da Primavera, a chegada dos novos dias, que para qualquer curdo significa também a luta por novos dias de liberdade, democracia, reconhecimento da sua identidade. Renato Soeiro viveu esse dia em Diyarbakir e conta episódios de uma Primavera curda que tarda em estender-se da natureza às pessoas.
O Newroz 2012 foi um acontecimento de grande importância que ficará na história da Nação Curda. Foto Renato Soeiro

Domingo, 18 de Março, participei em nome do Partido da Esquerda Europeia nas comemorações da Primavera na capital do Curdistão, a velha cidade de Amed ou Diyarbakir, como é conhecida pelos turcos. Trata-se de uma tradição milenar, uma comemoração popular para saudar a chegada da nova estação, a que os curdos chamam Newroz – os novos dias.

Mas o movimento da Resistência Curda das últimas décadas contribuiu com novos significados para esta comemoração, como por exemplo a celebração do seu desejo de pôr fim aos dias de Inverno da repressão e iniciar os novos dias da Primavera da liberdade.

Fomos recebidos no hotel por uma querida amiga, a activista curda Feleknas Uca, que foi durante dez anos eurodeputada europeia alemã, de 1999 a 2009, eleita nas listas do Die Linke (A Esquerda). Usando as vestes tradicionais, tal como muitas mulheres curdas nestas festividades, expôs-nos rapidamente a situação e as notícias não eram boas: o governo turco tinha proibido as comemorações, o local tinha sido bloqueado e forças policiais cortavam as ruas de acesso ao Parque Newroz.

Decidimos reunir-nos na sede do Partido da Paz e da Democracia (PPD, BDP na sigla curda), o partido do povo curdo, que organizou as comemorações do Newroz.

Foto Renato Soeiro

Dois autocarros estavam prontos para transportar alguns dirigentes e activistas do movimento internacional convidados para o acontecimento. Os autocarros foram decorados com palavras de ordem e equipados com um poderosos sistema de som transmitindo canções curdas tradicionais e hinos e muitas pessoas dançavam em torno deles; os veículos acabariam por assumir um papel fundamental ao longo do dia.

A polícia, que cercava a praça, começou a lançar ataques contra as pessoas concentradas no local, utilizando canhões de água e gases lacrimogéneos.

Apesar disso conseguimos entrar nos autocarros e iniciar a marcha, seguidos por numerosos automóveis. Fomos informados de que em diferentes locais da cidades havia muita gente tentando quebrar o bloqueio, pelo que se registavam confrontos graves.

No exterior dos autocarros o ambiente não era amistoso... Mas a nossa viagem nos autocarros não durou muito tempo. Uma unidade de polícia, recorrendo a "argumentos de força", bloqueou os veículos.

Tivemos de os abandonar e nas ruas os confrontos prosseguiam.

Os dirigentes do BDP decidiram que se não podíamos ir de autocarro iríamos a pé. E como não podíamos caminhar pelas ruas fizemo-lo através dos campos.

De todas as direcções chegavam grupos de pessoas convergindo para a área do parque. Recebemos a informação de que as barreiras policiais em torno do recinto tinham sido desmanteladas e que as pessoas começavam a concentrar-se em grande número.

Os autocarros, agora vazios, conseguiram dar a volta à cidade e apanhar-nos mais adiante de modo a conduzir-nos através das ruas de acesso ao parque, agora franqueado pelo povo.

Durante este último quilómetro as pessoas saudavam os autocarros do BDP, tanto as que seguiam pelas ruas como as que estavam em suas casas. A multidão convergia de todos os lados e de todas as maneiras para o Parque Newroz. Havia uma sensação de vitória e de felicidade no ar.

Durante o percurso observámos que as barreiras da polícia tinham sido derrubadas.

A polícia colocara grande número de unidades móveis à volta do parque para interceptar e bloquear as telecomunicações. Algumas delas, porém, foram por assim dizer "interceptadas e bloqueadas" pela população e os seus equipamentos de espionagem neutralizados. Os autocarros chegaram finalmente ao Parque Newroz.

Observámos então como a multidão era imensa.

O palco continuava funcional. No lado esquerdo da decoração via-se uma pintura da estáuta de Zakia Alkan, a mulher que se imolou pelo fogo para protestar contra a proibição turca das comemorações do Newroz. Nada poderia ser mais simbólico para este dia.

O palco estava a abarrotar de gente porque não poderia ser usado para fazer discursos. Na véspera, a polícia confiscara todo o equipamento de som instalado para impor o silêncio aos oradores.

Mas o BDP ainda tinha o sistema de som dos autocarros. Então, do alto dos autocarros foram muitos oradores – dirigentes do partido, membros do Parlamento e autoridades locais – que se dirigiram à multidão.

Até militantes da guerrilha falaram, com as faces cobertas por razões de segurança. Muitos dos oradores das anteriores comemorações tinham sido acusados e presos na sequência da participação nas comemorações do Newrzoz.

Os dirigentes curdos consideraram a vitória deste dia como um marco no seu longo combate pela liberdade e a democracia. Newroz 2012 foi um acontecimento de grande importância que ficará na história da Nação Curda.

O dia, porém, ainda não tinha acabado.

Depois da concentração, quando as pessoas abandonavam o parque, a polícia estava à espera. E carregou sobre as pessoas com grande violência. Uma mulher agredida ficou prostrada na rua e transportamo-la para dentro de um dos autocarros. Depois, com a ajuda do presidente da Câmara de Diyarbakir, Osman Baydemir (um respeitado advogado e activista dos direitos humanos, membro do BDP) foi transportada de automóvel para o hospital. De qualquer modo, não podíamos movimentar-nos. A polícia bloqueara e apresara os autocarros, obrigando-nos a abandoná-lo.

Prosseguimos o caminho a pé.

Recebemos entretanto a informação de que durante os violentos confrontos registados em Istambul morrera Haci Zengin, membro da Comissão Executiva do BDP, atingido por uma bomba de gás lacrimogénio lançada pela polícia e que havia mais pessoas feridas.

Registaram-se centenas de prisões tanto em Istambul como em Diyarbakir. Esperam-se mais acções violentas e perseguições por parte fa administração opressora durante as próximas semanas.

Mas não é preciso ter-se um doutoramento em História ou Sociologia para se perceber que o povo curdo jamais se renderá no seu combate pela liberdade, a democracia e os seus legítimos direitos culturais. E que "um dia hão-de vencer".


Texto publicado no portal do Bloco no Parlamento Europeu.

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Sobre o/a autor(a)

Engenheiro Civil. Ativista do Bloco
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