You are here
A quem pertence o meu corpo?
Muito recentemente, somaram-se títulos nos jornais sobre um futuro «bordel» na Mouraria, em Lisboa. Trata-se, na verdade, da proposta de constituição de uma Safe House para mulheres prostitutas, que a Obra Social das Irmãs Oblatas e o GAT - Grupo Português de Ativistas sobre Tratamentos de VIH/SIDA pretendem incluir no Programa de Desenvolvimento Comunitário da Mouraria (PDCM). Na Safe House, as mulheres que trabalham naquela zona da cidade poderão ter acesso a serviços de apoio na área da saúde e também, por exemplo, informação jurídica a vários níveis. Sendo um espaço que potencia a prática de sexo seguro não há lugar ao lenocínio, uma vez que será gerido por uma cooperativa de prostitutas ou outro modelo semelhante. Tudo ainda está a ser estudado e, segundo os proponentes, em conjunto com a Câmara Municipal de Lisboa e sobretudo com aquelas mulheres.
Certo é que a reação mediática à proposta foi animada pela caricatura e pelo preconceito. O tempo é, pois, de discutir as questões base que regulam a nossa avaliação e posição sobre o trabalho sexual. Deixo aqui apenas alguns argumentos, pontos de vista, perguntas indiscretas.
Desde logo, a palavra de ordem que levou à participação de um pequeno grupo de trabalhadores e trabalhadoras do sexo na manifestação que junta quem trabalha sob o gume da precariedade, o MayDay, já em vários 1.ºs de maio, é problemática, embora muito assertiva e direcionada: «Trabalho sexual é trabalho». Estas pessoas conhecem bem o trabalho precário, sobretudo na sua forma mais brutal, isto é, a que junta a máxima fragilidade e a ausência de direitos laborais, proteção social, reconhecimento social. Querem, acima de tudo, ser olhados como trabalhadores e trabalhadoras.
Muitas vezes, a discussão, que até se encaminha para o reconhecimento do trabalho sexual como uma atividade legítima, ainda tropeça no tabu que, de um modo hipócrita ou menos refletido, reconhece aí um modo de exploração inaceitável. O centro desta questão é o corpo. O mesmo corpo que na agricultura, no comércio, num callcenter, num laboratório ou num escritório trabalha e é vendido como mercadoria no mercado de trabalho. Quem se reconhece na luta contra a exploração questiona esse corpo-vida-mercadoria que se remunera em troca de serviços e que se explora como força de trabalho. Quem se reconhece nesta luta exige direitos, proteção social, contratos de trabalho, dignidade. Ao mesmo não terão direito todas as pessoas que voluntariamente integram o setor do trabalho sexual?
Na relação de forças tenta-se medir e ganhar o lado que protege a mais privada de todas as propriedades, o corpo. Mas a quem pertence esse corpo, o meu corpo? A quem pertencia o meu corpo quando involuntariamente, por desespero, me inscrevi num callcenter para poder pagar propinas naquele ano letivo? Fui usada pela TMN, explorada pela ETT que me sub-contratou. O argumento que diz que as pessoas são empurradas para a prostituição pela crise ou pelo regime da exploração coloca-as como vítimas à espera dos amanhãs que cantam, enquanto os outros vivem hipocritamente negando a realidade e aconchegando os seus tabus, o do corpo e o do sexo.
O meu corpo não pode pertencer aos meus patrões, ao Estado nem aos outros. Esta afirmação leva-nos para a questão feminista do direito à autodeterminação. É a ideia de um corpo objectificado sobre o qual a sociedade pode impor juízos morais, modelos de sexualidade, modos de uso e usufruto, que leva por exemplo à criminalização do aborto, ou, como neste caso, ao julgamento ou vitimização de quem escolhe o trabalho sexual. A mesma ideia reitera uma outra, a de pessoa-objeto que está no mundo para ser usada, não reconhecida na sua humanidade e dignidade, disponível para ser tocada, assediada, perseguida em qualquer lugar. A regulamentação do trabalho sexual, desta profissão ou profissões, significa aceitar que cada uma e cada um pode fazer escolhas para si e sobre si mesmo e permite a garantia de que estes trabalhadores e trabalhadoras têm acesso a direitos laborais, à proteção social e à organização sindical.
O reconhecimento desta profissão, de todas as atrizes e atores, dançarinas e dançarinos, prostitutas e prostitutos, é um sinal de respeito pela liberdade individual que o Estado pode e deve dar às suas cidadãs e aos seus cidadãos, um primeiro passo para o comprometimento para com todas as pessoas que trabalham, sem exceção.
Muito mais se poderia dizer. Voltaremos a este tema.
Comments
Sofia Tenho uma filha
Sofia
Tenho uma filha possivelmente da sua idade.
Tenho imenso respeito pela liberdade individual, mas ficaria muito triste se a minha filha tivesse essa opção de vida....e vem-me sempre à ideia este mote:
Legalizar a prostituição?
Olha os marotos..
Prás filhas dos outros
Não acredito que em pleno
Não acredito que em pleno século XXI ainda estejamos a discutir a legalizaçao da profissão mais antiga do mundo. A pessoa que fez o primeiro comentário nao gosta da ideia da filha ser prostituta, mas esquece-se do que disse a Sofia, que existem outras formas de se vender o corpo, e que no momento em que a filha entrar no mercado de trabalho, em qualquer outra profissão será mesmo isso o que ela vai fazer. O que as pessoas ainda têm contra a prostituiçao ainda vem dos tabus que as pessoas têm em relação à sexualidade. Toda a gente faz, mas ninguém acha bonito fazer-se, o que é perfeitamente medieval e, por conseguinte, triste!
Quer dizer "entrar no mercado
Quer dizer "entrar no mercado de trabalho" é ser prostituta. Que idiotice....
Eu sei que deve ser
Eu sei que deve ser complicado para si perceber, mas não se preocupe eu explico, e explico devagar, que é para não se perder: Entrar no mercado de trabalho é vender algo, um talento, o nosso tempo, o nosso intelecto quando este é efectivamente necessário para efectuar as tarefas para que somos pagos, a nossa força física quando dela precisamos, etc... E daí que sejamos pagos, porque estamos efectivamente a vender algo, algo de nós. Dentro do paradigma em que vivemos todos temos um valor monetário, que é efectivamente aquilo a que se chama o nosso ordenado. As pessoas, de um modo geral, incluindo muito obviamente sua majestade, acham muito normal e aceitável um indivíduo vender o seu intelecto para criar estratagemas perigosos de marketing para esvaziar os bolsos ao consumidor e convence-lo a comprar coisas de que não precisa, assim provocando danos irremediáveis na sociedade e consciência colectivas, mas no entanto, acham inaceitável uma mulher vender o corpo, sendo que isso a afectar seja o que for, só lhe afectará a ela e a mais ninguém. Se um é trabalho, ou outro é prostituição, muito embora nos dois se faça não mais do que uma transacção de serviços por dinheiro. Mas enfim, nós os idiotas que escrevemos estas "idiotices" é que somos estúpidos, e os cegos preconceituosas como vossa excelência é que são os inteligentes. E estas são a sociedade, o paradigma e a mentalidade que temos. Bem haja minha senhora, faça bom proveito da ignorância e da formatação. Eu sou só uma idiota, porque idiota morrerei a dizer as verdades sobre esta sociedade; porque se um ignorante me chama de idiota eu só posso considerar isso, muito que obviamente, um elogio!:)
Não percebeu, e eu até lhe
Não percebeu, e eu até lhe explicava se tivesse paciência e tempo, porque já percebi que teria que lhe explicar devagarinho e em linguagem muito básica, com muitos exemplos e talvez até desenhos e gráficos, mas como não tenho nem o tempo nem a paciência e acima de tudo não dialogo com indivíduos limitados de cognição limito-me a dizer-lhe que ser chamada de idiota por uma ignorante é muito obviamente, minha cara senhora, um grande elogio! Bem haja!
Add new comment