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Cercar o cerco

Os países chamados periféricos estão hoje a aguentar um cerco. Mesmo no pior dos cercos há ruas que cantam.

Até a esperança se torna frágil quando os olhos pousam em cima deste governo tal a dimensão do descalabro, da compulsão para a razia e para o vício no investimento planeado do caos.

Os países chamados periféricos estão hoje a aguentar um cerco. Os outros também mas olham de viés, a disfarçar.

Já não é um cerco heroico em que a memória se revolve e sofre ainda na lembrança torturada de Leninegrado; já não é o cerco que a voz de Fernão Lopes anuncia com aquelas palavras ágeis de repórter do seu tempo; já não é o cerco a Madrid que os fascistas levaram a cabo antes de entrar na cidade escaqueirada.

Nesses cercos colhiam-se ervas nos jardins para fazer sopa e matavam-se gatos e cães para cozinhar; a lividez da fome infame pontificava nos gritos das mulheres que constatavam a evidência do vazio. Este cerco de hoje, continua a deixar-nos tomar café, como se nada fosse, e nas prateleiras das grandes superfícies comerciais ainda há produtos para vender. Para vender. Para comprar há cada vez menos.

Este é um insuportável cerco ao nosso quotidiano, à vida pacata de cada um e cada uma, um cerco feito às pinguinhas, com desempregos, com roubos escandalosos nos salários, com o som do serrote do corte dos direitos a ser suplantado pelo coro dos fiéis neoliberais na sua missa bancária rezada em alemão com água benta francesa. Um cerco que anuncia que o período das vitórias, dos combates e conquistas acabou, proclamando agora o início de uma nova era de derrotas, rendições, sujeições e perdas. Tempo mau, obtuso, acanalhado por mau viver. Um cerco supostamente manso, até haver resposta. Depois logo se verá. No meio disto tudo, glória à Grécia cercada.

Prosseguem as cantatas da troika. O solfejo dos discursos acompanha o comando da televisão. Quando o ecrã se ilumina lá salta a ladainha.

Discursos tão retos como aqueles que ouvimos aos bêbados e aos indigentes de pensamento, o discurso do viver acima das possibilidades, vão mas é trabalhar, a hora é de unir esforços, viva a união nacional.

Querem que estacionemos o carro da nossa vida no meio de dois pilares. O pilar da fome e o pilar do sofrimento. Não dá. O estacionamento é pequeno. Só amolgando o popó todo é que ali caberemos. Só arranhando, escalavrando, golpeando a chapa é que entraremos ali. Isto não vai lá assim, nem de frente nem de marcha-atrás. Se querem que estalemos a pintura não se admirem quando o verniz sair.

Num cerco as ruas mudam a sua forma e o tamanho. Por vezes agigantam-se de fúria, com marés que vão chegando a pouco e pouco. Mesmo no pior dos cercos há ruas que cantam. Há ruas que se pintam, se maquilham de palavras de ordem, que podem deixar de ser palavras para serem verdadeiras ordens. Comandos vindos cá de dentro. Ordens nem sempre muito ordeiras. Impulsos transparentes de autodefesa. Aquela compulsão para a vida que a ameaça de morte ou apagamento sempre produz. As ruas abraçam a resistência à tragédia. O pior que pode acontecer às cidades cercadas é ostentarem ruas trágicas. Por isso as cidades, mesmo as cercadas, optam sempre pela interdição da tristeza. Se a tristeza consegue vencer, as cidades não ficam só tristes. Ficam dilacerantemente amargas. Não há pior coisa que uma tristeza amarga. Deixa grandes cicatrizes no rio de acidez da amargura.

A tristeza normalmente chega em horários coincidentes com telejornais previamente anunciados. Chega coladinha, às cavalitas dos paleios dos ministros. É mais triste quando os ministros não têm a mais pequena parcela de vergonha, um pingo de ética, uma gota de aprumo cumpridor das promessas que fizeram. Essa tristeza é mesmo muito triste.

Cabe às ruas ratificar ou não a tristeza e a tragédia. Podem vetá-la. Fechar-lhe as portas. As ruas podem barricar-se contra os cercos. Podem cercar os cercos. Aí podem acontecer coisas mágicas. Cercar o cerco. Banir o massacre e a tristeza. São tudo possibilidades. Possibilidades absolutamente possíveis, quando a verdade se entorna e começa a cavalgar por tudo quanto é sítio. Quando até as letras saltam nas palavras dada a urgência de serem escritas na fúria da redação. Quando as canetas ou os lápis, ou as teclas se abraçam aos dedos e se enroscam com afeto, a facilitar a escrita. Saem então palavras fortíssimas. O punho das palavras impõe-se e lança-se brutal sobre os que cancelaram a felicidade. Sobre os que têm a miséria como paradigma, e mais que isso, os que usam a penúria como emblema. A infâmia da carência. Quando se fala em empobrecimento, em descida aos infernos da austeridade, a direita baba-se de pré regozijo, mostra o corpo em apetências de negócios.

Nem as ruas nem as cidades, mesmo as cidades cercadas, gostam de assistir impávidas ao extermínio da alegria. Se isso acontecer um dia reeditaram-se páginas da história em que a humanidade perdeu o rosto humano. Significaria a persistência da desgraça e a vitória do desastre. O triunfo da vontade do mal.

Este tempo já sobra. Tem ferrugem. Não presta. Anda tudo cheio de uma grande quantidade de mau aspeto.

Parece que as ideias se piraram deste tempo feroz em que vivemos. Esta ferocidade não é feita de sistemáticos combates contra as ideias e ideais. É feita da própria ideia de que já não há ideias. É esse o ideal desta direita lupina. O seu ideal é o fim dos ideais.

Explicam-nos isto assim: já nada é o que era. O mundo mudou. A memória da História, da vossa História, é hoje uma anedota. Uma piada de mau gosto. Do Marx nem as barbas se aproveitem. Já não há trabalhadores. Agora só há colaboradores. Portanto, já não há luta de classes. Isso era dantes. Vocês já tiveram tudo. Quase tudo. Agora, a bem dizer, não têm nada. Quase nada. Mas hão-de ter para o ano. Ou para o outro. Ou ainda para o outro. Trabalhem para o bem de todos nós. Vejam muita televisão para o bem de todos nós. Discutam os reality shows que a SIC ou a TVI cospem todos os dias. Isso é que interessa. Se estão desempregados procurem trabalho. Párias. As empresas a precisarem de colaboradores e gente em casa a receber subsídios.

Querem-nos num mutismo abandonado. Quanto muito a falar ao telemóvel. Têm telemóveis o que é que querem mais? Falem à vontade e mandem mensagens uns aos outros.

Esta gente está a pedi-las. A alemã e o francês, o Coelho e o Gaspar, aquele outro da segurança social que andava de mota, o da economia que não diz nada de jeito, o Portas que só fala de vez em quando, a da agricultura que tem uma fé do caraças, esta gente toda, e mais alguma, anda a pedi-las. E quanto mais tarde pior. É hora de cercar o cerco.

Sobre o/a autor(a)

Advogada, dirigente do Bloco de Esquerda. Escreve com a grafia anterior ao acordo ortográfico de 1990
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