You are here

Zecabolinar é preciso

Quando os ventos não são favoráveis, uma embarcação precisa de motores potentes - e combustível - ou então de usar velhas formas de navegação. É necessário bolinar, navegar a contra-vento. É preciso saber os truques, adquirir a técnica, aprender como Sexta-feira aprendeu com Robinson a manejar o barco. Aí entra o Zeca e ajuda a malta. Como? Artigo de Pedro Rodrigues.
Foto de Patrick Ullman. Foto retirada do site da Associação José Afonso.

Radicalizar a voz

No princípio era uma voz. Não a confundam com ele mesmo, que morreu há já 25 anos. É apenas uma parte da sua voz que por aí ficou. Ecos de quem se lembra. E os sons fixados que ficaram registados em gravações. Não é uma bela voz, apenas. É uma forma de cantar contra o vento, orientada por horizontes largos, mas sempre a dialogar com o presente, com outras vozes. “É para Urga que a gente vai/ Em Urga caminho/ Caminho para lá/ Em Urga os bandidos não me hão de apanhar/ Eu hei-de vencer/ Entre mim e Urga / O deserto que houver”.

Apetece agora arrancar a utopia do Zeca do idealismo bacoco e dos cantos de saudade. A sua utopia não é o objectivo longínquo e o lugar inexistente e impossível: é parte do combustível para as lutas presentes.

Depois aquela voz fez um percurso. Não foi sempre a mesma, aprendeu a cantar cantando, teve de responder com verdade à mentira de uma ditadura e da guerra colonial. Radicalizou-se. Teve de fugir, teve de combater, teve de se calar provisoriamente, teve de vir para a rua gritar. Antes e depois da incompleta revolução portuguesa. Antes dela, o Zeca sussurrou apenas: “Qualquer dia...” E só isso já fez explodir a esperança. E a revolução estava ali à mão de semear.

A política está lá mais fundo

“Faço música como quem faz um par de sapatos”, disse ele numa entrevista. Um artesanato, portanto, feito à mão. E uma forma de ver a sua própria produção musical, que é em si mesma política: a política não está só nas letras das canções, não está só à superfície, está lá mais fundo. Não é só o que se diz, é como se faz que pode ajudar a navegar contra o vento, com a resistência do mar. Com os outros, sempre com os outros por mais genial que se seja, sempre com amigos, sempre com os produtores do mundo que reclamam hoje de novo o que lhes pertence e os seus frutos: o trabalho, o amor, a vida. Na mesma entrevista, Zeca Afonso criticava o mundo do espectáculo (“os palcos”), que não lhe dizia muito. Interessavam-lhe sobretudo as relações entre as pessoas (“os contactos que estabeleço”) e a mudança dessas relações. A igualdade como ponto de partida (a utopia não está lá no fim da meta, está logo aqui) e outra vez de chegada - uma estação provisória. E outra vez de partida. Talvez um comboio descendente, onde vem tudo à gargalhada.

A coragem de não desistir

Professor proibido de ensinar, cantor impedido de cantar, ele não desistiu. E a não desistência dá frutos, ajuda a ter a coragem de não desistir hoje outra vez, quando é preciso afrontar o autoritarismo moderno dos “mercados” que é preciso “tranquilizar”. Com o Zeca podemos aprender o contrário da submissão: o conflito aberto, a irreverência, a luta (onde é preciso tomar posição), a força inesgotável da imaginação e da transformação humana do mundo. Amando a música e pensando com a música.

Zecabolinar

A revolução não é um evento e pronto, já está. É o longo processo de emancipação da gente. É a reapropriação do mundo que pertence a quem o faz. Podemos apregoar que tudo está mal e nada fazer para o mudar - tanta gente o faz... Ou podemos pegar na história pelos cornos, e construir novos alicerces para o mundo. Zeca Afonso foi revolucionário na palavra e na acção. Podemos pintá-lo de humanismo sentimental – é fácil e consolador. Podemos mesmo fazer dele mito, trovador e santo, se quisermos. Mas não será um engano fazer-lhe isso logo a ele que ajudava a derrubar mitos e a dar cabo dos sagrados consensos? Podemos valorizá-lo, como merece aliás, colocando-o no grupo dos grandes artistas e compositores de sempre. Mas não será mais decisivo ir buscar à sua música, à sua vida (e ao que ele dela fez) uma outra coisa, que ele genialmente fez, mas que é aquisição comum de toda a humanidade? Essa outra coisa é o apelo mais vivo e transformador que é preciso acordar outra e outra vez no fundo da sua música e da sua produção que nos liberta, porque nos dá ferramentas para sermos livres. Conhecendo a sua música, é claro. Fazendo outras músicas, certamente. Derrubando os mitos à bolina. Lutando e navegando, resistente, contra os novos predadores das nossas vidas. Com o combustível da utopia, no caminho da revolução.

Artigos relacionados: 

Termos relacionados Sociedade
(...)