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O pecado de ser mulher
A propósito da sua nomeação, que consiste em pertencer a um “tribunal” que decide perdoar ou não os pecados mais graves que os sacerdotes não podem absolver, este Cardeal teceu considerações acerca da situação que o país atravessa, afirmando: “Acho que o país vai ultrapassar este momento, mas os governantes têm de ter a noção de que é necessário pagar o que se deve. Mas o maior problema de Portugal é outro…” Qual, pergunta o jornalista. E a resposta sai pronta: “O pouco apoio que o Estado dá à família. A mulher deve poder ficar em casa, ou, se trabalhar fora, num horário reduzido, de maneira que possa aplicar-se naquilo em que a sua função é essencial, que é a educação dos filhos.”
Ao contrário de outras vozes lúcidas da Igreja Católica, que acompanham a situação do povo que sofre com o desemprego, os cortes nos salários, os cortes nos apoios sociais, a fome que atinge cada vez mais famílias e clamam por justiça social, este Cardeal encontra nas mulheres o principal problema do país.
Elas trabalham, estão fora de casa, recebem um salário, têm independência… Começam por aqui e num instante estão no sindicato ou num partido político, até podem vir a ser deputadas, vereadoras, presidentes de câmara. Abandonam a sua principal função – educar e cuidar dos filhos e filhas. E já que estão em casa, tratam também dos idosos e dos homens, carregam com todo o trabalho doméstico e à noite não podem estar cansadas, porque, se verificarmos bem, isto não é trabalho, é a sua função essencial.
Em tempos de crise, quando o desemprego alastra, consumindo uma parte tão significativa do potencial humano do país, estas ideias sobem sempre à tona. Vêm devagar, parecendo quase inofensivas ou mesmo um disparate, mas revelam o pensamento mais retrógrado sobre as mulheres e o seu papel na sociedade. E acabam por somar a outras que nunca foram erradicadas: não contratar mulheres porque podem engravidar, porque terão sempre mais responsabilidades com os filhos e filhas, pagar menos a uma mulher, porque é mulher, embora desempenhe as mesmas tarefas que um homem, facilitar o seu despedimento, discriminá-la no local de trabalho, assediá-la, e por aí fora…
São as ideias inimigas da igualdade, são as ideias que oprimem as mulheres. São do passado, mas estão à espreita e merecem repúdio imediato.
Num momento em que as leis do trabalho são alvo de um brutal retrocesso, os direitos conquistados pelas mulheres, que protegem e defendem as mulheres no mundo do trabalho também estão em causa e por isso devem ter visibilidade nas lutas que se avizinham e na próxima Greve Geral.
Estas declarações, deste Cardeal, revelam um completo desligamento da situação que o povo vive e mostram como está preso ao pecado capital da Santa Sé, que trata as mulheres como cidadãs de segunda. Assim não há absolvição que lhe valha.
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"A mulher deve poder ficar em
"A mulher deve poder ficar em casa, ou, se trabalhar fora, num horário reduzido, de maneira que possa aplicar-se naquilo em que a sua função é essencial, que é a educação dos filhos.”
É preciso querer falar para não se estar calado!!! Conseguem perceber a diferença entre "deve poder" e "deve"!? Nuno Ferreira
O jogo de palavras é neste
O jogo de palavras é neste caso irrelevante e não altera a mensagem substancial das declarações do Cardeal D. Manuel M. de Castro. Compreende-se a diferença entre "deve poder" e "deve", assim como entre "deve poder", "tem" ou "tem que ser obrigada". Estes exemplos exagerados servem apenas para sublinhar o facto de, neste caso em particular, a subtileza linguística não obliterar o pensamento, ideologia e teologia tradicionais católicas - com a qual ainda partilham a maioria dos eclesiásticos (salvo uma minoria empenhada em dar aos dogmas religiosos uma nova e moderna roupagem).
A escolha das palavras do Cardeal corresponde e está condicionada pelas reacções que ele sabe (mesmo que inconscientemente) que poderão suscitar numa sociedade laica e, grosso modo, democrática como a portuguesa. Isto é, usou de uma linguagem o mais subtil e delicada possível para transmitir uma ideia obtusa, reaccionária, machista e passadista (se bem que natural aos olhos da teologia católica).
Não tenho dúvidas que se o
Não tenho dúvidas que se o dissesse durante o Estado Novo, teria empregue um sentido imperativo, arrogante e mais paternalista.
No fundo, neste caso (repito), a forma não esconde o conteúdo, e este é claro para qualquer pessoa minimamente conhecedora da história da Igreja e das suas ideias relativas à natureza e deveres da mulher.
De resto e tratando-se de um alto cargo na hierarquia clerical, estranho seria se um penitenciário-mor da Santa Sé (que "deve" ou "deve poder" determinar o "mal" e o "bem" em função de uma tradição teológica milenar) defendesse o contrário, pelo que em nada me surpreende este tipo de raciocínio.
Eu não quero mesmo falar
Eu não quero mesmo falar apenas para não estar calada. Até porque raramente o faço. Mas o comentário do Nuno Ferreira arrepiou-me.
Concordo plenamente com a opinião da Helena Pinto e temos mesmo de estar muito atentos, porque, sob uma capa de "falsa inocência", "falsa bondade da coisa" esconde-se o que realmente se pretende dizer.
Quanto à pergunta do Nuno Ferreira sobre a diferença entre o "deve poder" e "deve", é óbvio que neste caso não existe qualquer diferença. A mensagem está encapotada, e só alguma ingenuidade leva a pensar de outro modo. Além disso, depreendo que o Nuno Ferreira concorda que a educação dos filhos é função exclusiva da mulher. Porque o seu enforque é na expressão "deve poder". Como é que nos dias de hoje ainda se podem aceitar estes argumentos?
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