Um dos mitos mais correntes sobre o funcionamento de uma economia nacional é o de que gerir um Estado é equivalente a gerir uma casa. O raciocínio é errado por vários motivos, que abordarei mais tarde, mas aqui pretendo apenas centrar-me na sua consequência imediata, a saber, a ideia de que um Estado não pode gastar mais que as receitas que aufere. Na realidade, é perfeitamente possível que os gastos do Estado excedam as receitas de forma sistemática, sem que com isso a dívida pública como percentagem do Produto Interno Bruto (PIB) aumente.
Podemos começar por perceber como isto é possível através de uma comparação das dinâmicas do défice e da dívida pública em Portugal. Abaixo reproduzo dois gráficos com base em dados oficiais do Instituto Nacional de Estatística.
A constatação mais evidente que podemos retirar do primeiro gráfico é a de que o Estado português, no período entre 1995 e 2010, nunca conseguiu ter um superavit, acumulando um défice nunca inferior a 2% do PIB. Podemos também ver que o objetivo do Pacto de Estabilidade e Crescimento, de ter um défice inferior a 3% do PIB, apenas foi alcançado nos anos 1999, 2000, 2002 e 2003. Mas olhemos agora para a dívida pública.
Entre 1995 e 2000, a dívida pública como percentagem do PIB diminuiu continuamente. Um dado que, por si só, contraria a ideia de que existe uma relação linear entre o défice e a dívida, tanto mais quando o défice nos anos 1995 e 1996 foi relativamente elevado. O que podemos ver, isso sim, é que a dívida pública aumenta quando temos um défice muito elevado, como é o caso dos anos 2009 e 2010, quando os impactos da crise se fizeram sentir de forma mais aguda.
Para percebermos como pode ser possível termos um défice positivo e, simultaneamente, vermos a dívida pública a descer é necessário recorrer a alguma matemática. Recordemos que a dívida pública é calculada como percentagem do PIB, ou seja, pelo rácio Dívida/PIB. Quando a dívida aumenta, o rácio aumenta, mas quando o PIB aumenta o rácio diminui. O que determina se o rácio aumenta ou diminui de ano para ano depende, portanto, da evolução destas variáveis.
No longo prazo, temos que a dívida pública cresce à taxa média do défice orçamental, ou seja, à taxa a que se chama por vezes o défice estrutural. Se o défice estrutural for de 2%, então temos que a dívida pública aumenta em 2% a cada ano, em média.
Como se comporta então o rácio Dívida/PIB neste cenário? Bom, depende da taxa de crescimento do PIB. Se o PIB crescer a 4% ao ano, digamos, então este rácio tenderá para 50%. Se o PIB crescer apenas 2% ao ano, temos que o rácio tenderá para 100%. Não havendo um método matemático que nos permita calcular qual é a percentagem ótima para este rácio, estamos perante uma escolha que tem de ser feita à luz do projeto de sociedade que temos em mente.
Há dois motivos para um Estado acumular défices durante uma recessão. O primeiro é o funcionamento dos chamados estabilizadores automáticos. Numa recessão, o desemprego é maior, pelo que temos menos gente a pagar impostos e mais gente a receber subsídios. As empresas registam valores mais baixos de lucros, o consumo retrai-se, de onde decorre uma queda significativa do volume de receita arrecadada com impostos. Quando somamos tudo isto, não será difícil perceber porque a eclosão de uma crise internacional fez com que Portugal passasse rapidamente de “bom aluno”, com um défice estabilizado, a “despesista”, com um défice muito elevado.
O segundo motivo para o défice variar inversamente com a taxa de crescimento do PIB é a existência de políticas públicas anti-cíclicas. Quer isto dizer que durante períodos de recessão um Estado pode endividar-se para promover o investimento público, criar emprego e expandir o apoio social a quem mais dele necessita. Caso não o faça, então o impacto da crise será muito maior, como tragicamente o exemplo da crise da dívida na periferia da UE o demonstra.
Daqui decorre que o mais relevante na determinação da política orçamental, no longo prazo, não é o défice orçamental mas a relação entre o défice estrutural e o crescimento do PIB. Não é, portanto, nenhuma tragédia acumular défices elevados durante períodos de recessão, desde que os períodos de expansão sejam marcados por défices baixos e superavits. O que determina se um défice é baixo ou elevado, por seu lado, depende da sua relação com a taxa de crescimento do PIB.
Não se percebe, portanto, como pode uma cimeira europeia querer determinar um limite baixíssimo, de 0,5%, para o défice estrutural1, ao mesmo tempo que promete a recuperação do crescimento. A aprovação de uma norma deste tipo apenas serviria para reforçar a estupidez do PEC e retirar dos governos o controlo sobre a política orçamental, depois de terem entregue as suas políticas monetária e cambial ao Banco Central Europeu. Ou seja, estaríamos no paraíso neoliberal, em que o ajustamento das economias aos ciclos económicos se daria unicamente pelo desemprego e pela baixa de salários.
Ao raciocínio que aqui apresentei convencionou-se chamar “keynesianismo”, em honra do economista que o fez de forma mais clara e brilhante. Mas não temos de invocar o nome de John Maynard Keynes para percebermos como funciona a relação entre o défice, a dívida e o PIB. Na realidade, esta relação é tão facilmente demonstrável que é do mais elementar bom senso percebê-la. Até um economista do calibre de Pedro Passos Coelho deveria ser capaz de compreender isto.
1 Uma nota algo técnica: aqui estou a assumir que a definição de défice estrutural que o acordo assinado na cimeira europeia de dezembro dedicada à crise da dívida seguiu é a mesma que apresento aqui. Não tenho forma nenhuma de o confirmar, já que o acordo não é público. Na realidade, há múltiplas formas de estimar o défice estrutural de um país, todas elas disputáveis. Que uma cimeira europeia chegue ao ponto de querer pôr as políticas orçamentais da UE sob o domínio de procedimentos estatísticos disputáveis diz algo sobre a loucura a que chegou o eixo franco-alemão.