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A partilha e o roubo

A equivalência entre partilha e roubo é um dos maiores embustes dos tempos modernos.

Quem já comprou ou alugou um DVD nos últimos anos já teve de apanhar com o anúncio que estabelece uma equivalência entre a partilha e o roubo. O anúncio coloca a questão: se eu não sou capaz de roubar um DVD numa loja então como posso ser capaz de sacar um filme pela internet? Creio que esta equivalência entre partilha e roubo é um dos maiores embustes dos tempos modernos.

Saliento, antes de mais, que me refiro aqui apenas à partilha, não ao uso de obras protegidas por direitos de autor com intuitos comerciais. Para mim é muito claro que apenas quando existe um negócio com base no uso da obra de outrem se pode usar o termo pirataria. Como é o caso, ironia das ironias, do tal anúncio ignóbil anti-partilha, que usou uma música sem pagar os devidos direitos ao autor1.

O argumento contra a partilha de ficheiros (vídeos, músicas ou livros) via internet resume-se à ideia de que o/a autor/a da obra fica a perder porque não recebe nada pelo ato de consumo. Este é um argumento fraco, desde logo porque se aplica a todo o ato de partilha de obras artísticas. Ou seja, se eu estou a roubar o Rodrigo Leão, digamos, de cada vez que partilho um dos seus álbuns com estranhos usando um programa de peer-to-peer como o Emule ou o Soulseek, então também o estou a roubar quando decido emprestar um CD dele que comprei a um amigo. Da mesma forma, se estou a roubar o Steven Spielberg quando decido descarregar o “ET” usando um programa de bittorrent então também o estou a roubar se gravar o filme para um gravador digital quando passar na TV ou se resolver alugar o DVD e organizar uma sessão de cinema em minha casa.

O que a internet trouxe de novo ao mundo da partilha foi a facilidade com que se pode partilhar todo o tipo de obras artísticas. Não há muito tempo atrás, quando queria ter uma cópia de um álbum qualquer tinha de encontrar alguém que tivesse o álbum e arranjar uma forma de o copiar para uma cassete. Hoje obter um álbum é muito mais simples, na medida em que existem múltiplos programas que me permitem obtê-lo pondo o meu computador em contacto com outros computadores de gente que está a partilhar ficheiros MP3. Se há uns anos atrás existia toda uma rede de partilha de cassetes com gravações de concertos, hoje é possível alguém gravar um concerto para um telemóvel e colocar o ficheiro áudio a circular na internet no próprio dia. O esquema é o mesmo, apenas o suporte mudou.

Já em 2008, Paul Krugman escreveu uma crónica que agora interessa reler2. Começando por mencionar a forma como era previsível que o avanço da Internet obrigasse os vendedores de conteúdos a praticar preços cada vez mais baixos, prossegue para o exemplo dos Grateful Dead, que nos anos 1960 encorajavam os fãs a gravar os seus concertos e a partilhar as cassetes, sabendo que a perda na venda de álbuns seria mais que compensada pelo aumento na venda de merchandising e de bilhetes para concertos. Ou seja, tal como a partilha não é nada de novo, também não o é a sua aceitação por artistas que a veem não como uma ofensa ou um roubo mas como uma forma de promoção da obra artística e de democratização do acesso à cultura.

Do lado das editoras, contudo, nunca houve qualquer dúvida relativamente à condenação inequívoca da partilha, na medida em que constitui um atentado aos seus lucros, sobretudo porque coloca em causa o seu papel de intermediação entre artistas e públicos. Para os/as artistas, a facilitação da partilha pelas novas tecnologias de informação oferece a potencialidade de entrar diretamente em contacto com fãs. Daqui surge a possibilidade de surgirem projetos artísticos financiados diretamente por fãs, através de serviços como o Kickstarter. Surge também a possibilidade de artistas colocarem a sua obra gratuitamente na internet, optando por ganhar dinheiro apenas com as artes performativas (concertos, leituras, cinema, etc.). Em qualquer dos casos, as editoras deixam de ser necessárias.

É neste contexto, de perda de poder das editoras, que aparecem enormidades como as leis SOPA e PIPA, nos EUA. Leis que, se forem aprovadas, darão ao governo dos EUA o direito de encerrar um sítio como o Youtube ou a Wikipedia, caso seja detetado que alojam algum material protegido por direitos de autor3.

É neste contexto também que, no Reino Unido, se discute uma lei que irá criminalizar o uso de conteúdos protegidos por direitos de autor com fins humorísticos. Uma lei que criminalizará as paródias ao Star Trek ou ao Justin Bieber, daquelas que toda a gente adora partilhar no Youtube e no 9GAG4.

Pior que tudo isto junto, é neste contexto que surge o ACTA, um acordo internacional negociado secretamente que irá permitir a todas as corporações afetadas pela partilha de conteúdos via internet policiar o nosso uso da rede5. Caso este acordo passe no Parlamento Europeu, a internet rapidamente passará de um espaço de (relativa) liberdade para mais um meio de policiamento da vida privada das pessoas ao serviço do grande capital.

Tal como no caso das patentes, há um conflito de interesses evidente entre quem fez um trabalho artístico e justamente pretende obter uma remuneração e quem pretende ter acesso à cultura e não consegue ter porque os preços dos bens culturais são demasiado elevados. A promoção de formas de comunicação diretas entre artistas e fãs é uma forma de conciliar os dois interesses, criando-se grupos de fãs que financiam diretamente os artistas. Outra ideia, muito discutida agora, é a de aplicar uma taxa sobre as indústrias que mais beneficiam com a partilha e usar a receita dessa taxa para financiar um fundo de apoio à produção artística.

Creio que esta última ideia é pertinente. A forma como está a ser aplicada em Portugal, contudo, é um total desastre. De um lado, porque temos uma taxa sobre meios de armazenamento proporcional à capacidade, penalizando de forma estúpida quem compra discos externos para armazenar os seus dados. Do outro, porque a receita da taxa é atribuída a uma entidade corporativa, a Sociedade Portuguesa de Autores, que a distribuirá como bem entender. Apenas uma taxa fixa, cuja receita revertesse diretamente para artistas, via candidaturas a um fundo de apoio à produção artística, poderia fazer sentido.

De qualquer forma, a criação de um mecanismo de financiamento da produção artística nestes moldes apenas é razoável mediante a total abolição de qualquer instrumento que impeça o direito à partilha ou à cópia privada. As editoras não gostarão da ideia, é certo. Mas não é nos seus interesses que temos de pensar quando delineamos uma política cultural de esquerda.


3 Petição contra estas leis: http://www.avaaz.org/en/save_the_internet/

4 Ver a campanha pelo direito à paródia: http://www.righttoparody.org.uk/

Sobre o/a autor(a)

Ricardo Coelho, economista, especializado em Economia Ecológica
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