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As duas confianças
A retórica da confiança e da estabilidade tem sido um dispositivo importantíssimo da ação política do Governo. "O caminho é restaurar a confiança. Porque nós só vamos conseguir crescer quando os investidores começarem a acreditar na recuperação." A fórmula, declinada em versões várias, mostra ao que vem: a dita confiança é seletiva, é a confiança dos "investidores". E a estabilidade virá, enfim, quando os ditos "investidores" tiverem a confiança toda.
Neste discurso há dois silêncios estridentes. O primeiro é o que cala a instabilidade indesmentível dos "investidores". O segundo é o que cala a falta de confiança crescente dos "não investidores" no seu próprio futuro. Vamos por partes.
A confiança dos mercados (versão José Sócrates) ou dos investidores (versão Passos Coelho) é uma questão de fé. Está difícil, não se vislumbra, mas os crentes estão certos de que um dia ela virá. E para antecipar essa vinda, os oficiantes do deus mercado oferecem os sacrifícios que forem necessários. E sobretudo os que forem desnecessários. Sacrifícios dos outros, claro, nunca dos próprios. E esse é precisamente um primeiro silêncio espesso deste tempo. O discurso da direita sobre a confiança faz-se para manter intocado algo que é, por definição, tudo menos digno de confiança: o primado dos mercados financeiros. É uma escolha ideológica disfarçada de imposição da história. Em vez de apontar para uma confiança sólida, socialmente partilhada, que implicaria medidas corajosas para poupar a sociedade às febres especulativas dos "investidores", o que o Governo nos vem dizer é que a confiança é algo reservado aos que vivem dessas febres, é a confiança deles a única que devemos salvaguardar. E que toda a política - isto é, todas as escolhas decisivas para a comunidade - se deve assumir como refém desse privilégio de alguns poucos.
Ora, o outro lado da confiança dos "investidores" é a perda de confiança dos "não investidores" na sua vida quotidiana e no futuro. Um trabalhador que vê o seu salário diminuído (quer pela baixa do custo horário do seu desempenho quer pela supressão de dias de férias e feriados), uma bolseira que tem a sua precariedade laboral eternizada, um desempregado cujo subsídio para que descontou lhe é reduzido, uma reformada que deixa de receber parte da pensão já de si paupérrima - todos experimentam atónitos o incumprimento dos compromissos elementares que a sociedade tinha com eles estabelecido. Há um contrato em que assentaram as nossas vidas e que é rasgado súbita e unilateralmente. Que confiança podemos ter? Diz-nos a direita que, como em todos os contratos, a alteração substancial das circunstâncias pode ditar a sua alteração. Pois seja. Mas porque é que só dita para os "não investidores"? Porque é que essa alteração substancial das circunstâncias não para de reforçar a satisfação de tudo quanto é vontade (real ou presumida) dos "investidores"?
Ontem mesmo era tornado público um estudo com uma conclusão preocupante: só pouco mais de metade dos portugueses acham que a democracia é melhor do que um governo autoritário. Essa é a expressão maior da perda de confiança da generalidade das pessoas - os "não investidores" - em que lhes será permitido ter uma vida digna. Que o mesmo estudo revele que 89% dos inquiridos entendem que o que é mesmo importante na democracia é haver um nível de vida digno para todos os cidadãos, mostra as razões fundas da desconfiança crescente na democracia. Para os "investidores" isto pode até ser uma boa notícia - um Estado autoritário dá- -lhes garantias acrescidas de confiança.
Artigo publicado no jornal “Diário de Notícias” de 20 de janeiro de 2012
Comments
Em termos de confiança nada
Em termos de confiança nada como este senhor.
http://paisinutil.blogspot.com/2012/01/o-querido-lider.html
Com um líder destes os mercados iam ter todas as confianças...
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