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Hipocrisia do Conselho de Administração da CP

Fui recentemente confrontado, não sem algum choque, pesem embora anos de experiência como utente e como cidadão a respeito do modus operandi da CP, com uma notícia que dava conta da tentativa desta – galantemente gorada – em vender o Comboio Histórico de Via Estreita do Corgo para um qualquer museu no estrangeiro. Contributo de Daniel Conde.

Jacques Daffis, Vice-presidente da FEDECRAIL (Federação Europeia das Associações de Caminhos-de-Ferro Turísticos), com o qual tive já o prazer de trocar algumas impressões sobre a Linha do Tua, foi responsável por indagar junto do próprio Museu Ferroviário Nacional se este tinha conhecimento da tentativa trapalhona de venda da CP deste material único, os quais, mesmo apesar de terem interposto um pedido de cedência deste material, não haviam sido informados. Segundo o próprio, "Essa proposta pareceu-nos escandalosa, porque o material em via métrica português é raro e é uma composição que está em bom estado".

Ao que se apurou, uma porta-voz da CP terá tentado justificar esta trapalhada da seguinte forma: "Podendo haver interesse por alguma companhia ferroviária na sua colocação ao serviço para fins turísticos, a CP fez uma primeira auscultação do mercado para verificar a existência de eventuais interessados”.

E é aqui que eu entro: tem graça, a mim ninguém me perguntou nada.

À margem da minha actividade no Movimento Cívico pela Linha do Tua, do qual sou co-fundador, participei na 1ª edição do concurso nacional de empreendedorismo denominado “Realiza o teu Sonho”, da autoria e responsabilidade da associação Acredita Portugal. O projecto que levei a concurso teve o sugestivo nome de “Turismo Ferroviário na Linha do Tua”, e ficou em 3º lugar, entre centenas de projectos admitidos a concurso (vide http://www.acreditaportugal.pt/realiza-o-teu-sonho1/sumario-dos-projecto...).

Após receber o galardão em Julho de 2010, indaguei imediatamente o Conselho de Administração (CA) da CP sobre a sua disponibilidade e amabilidade em me receberem em reunião, para lhes poder ser apresentado o meu projecto, uma vez que tinha como ponto fulcral a cedência ou venda do mesmíssimo material histórico de que estamos a tratar nesta carta. Em correio electrónico de 1 de Outubro desse ano, a secretária do Vogal Dr. Nuno Moreira, do CA da CP, fazia-me chegar a deliberação deste membro da cúpula da arruinada empresa pública:

Como é do seu conhecimento a Linha do Tua encontra-se interdita à circulação ferroviária. Nesse contexto, o projecto apresentado de exploração do comboio a vapor de via estreita na referida linha é inviável enquanto se mantiverem as actuais restrições, que, sendo alteradas, permitirão uma reavaliação do projecto.

Não contente com esta desculpa esfarrapada, remeti novo pedido de audiência a 3 de Março de 2011, do qual não obtive ainda qualquer resposta.

Como noticiou e muito bem o jornalista autor da peça pela qual soube desta ignomínia, só na França, Reino Unido e Alemanha, o turismo ferroviário emprega quase quatro mil pessoas, e rende anualmente 174 milhões de euros, por vezes em vias-férreas recuperadas de décadas de ruína com a ajuda de mão-de-obra voluntária. Convém ainda referir que algumas destas jóias industriais, paisagísticas e humanas, desenrolam-se em traçados de distância inferior a 16 km, que é aquela de que a Linha do Tua dispõe actualmente para circulações ferroviárias, entre o Cachão e Carvalhais, fora os 20 km entre a Brunheda e o Cachão – à espera de uma decisão advinda da barragem do Tua – e os 76 km amputados entre Carvalhais e Bragança em 1992, que incluem por exemplo o cume ferroviário português em Santa Comba de Rossas.

Portugal possui 2 serviços turísticos ferroviários apenas, ambos no troço Régua – Pocinho, o mais ameaçado de extermínio na Linha do Douro. Entre os países francófonos da Europa, são 70 as empresas de exploração ferroviária turística, e na Espanha só a FEVE – maior operadora de Via Estreita do país de nuestros hermanos – conta com quase 10 destes serviços, de entre os quais 2 são comboios de luxo com programas de uma semana inteira. No País de Gales, o pequeno/grande projecto e exemplo de empreendedorismo e civismo da Welsh Highland Railway foi responsável por recuperar uma Via Estreita cuja linha há décadas havia desaparecido, graças a apoios comunitários, mas também a mecenas e voluntários de todos os quadrantes sociais; emprega 65 funcionários, gera anualmente 15 milhões de libras esterlinas de receitas para a economia local, e criou 350 postos de trabalho indirectos na região. A sua extensão é de 40 km – da Brunheda a Carvalhais, na Linha do Tua, são 37 km.

No País Basco, existe uma automotora Allan em exibição que circulou anos a fio nas Linhas do Tua e do Vouga, para além de uma locomotiva a vapor que faz serviços turísticos, gratificantemente apelidada de “Portuguesa”; na Suíça, o comboio histórico do Vale do Jura circula com outra locomotiva a vapor que cruzou a orografia trasmontana décadas a fio; nos Andes, as “Xepas” – automotoras que serviram nas Linhas do Tua e do Corgo – escalam montanhas de emoções únicas; na África subsaariana, as mais potentes locomotivas diesel de Via Estreita que circularam em Portugal (1.000 cavalos de potência), sendo a Linha do Tua a última via que serviram, rebocam pobres carruagens apinhadas de gente; recentemente, outra locomotiva a vapor de Via Estreita foi desmantelada e levada do Pocinho para a Alemanha para restauro, enquanto as fantásticas carruagens italianas “Napolitanas” apodrecem com displicência no Tua, e o museu ferroviário de Bragança segue com mais de 10 anos de encerramento.

Na qualidade de cidadão português trapaceado e negligenciado por um Conselho de Administração que esbanja nesciamente todos os anos o meu dinheiro de impostos, e que prefere ver material histórico ferroviário de Via Estreita exposto em museus estrangeiros, a rebocar comboios turísticos ou de passageiros no estrangeiro, ou a apodrecer e a cair aos pedaços em linhas de resguardo ou escondidos da vista em cocheiras espalhadas pelo país a fora, venho por este meio exigir uma satisfação. De quem, tanto faz, desde que tenha a vergonha e a decência de dar a cara por 30 anos de extermínio e escárnio do nosso património ferroviário de Via Estreita PORTUGUÊS, e explicar como é que é possível que certos gestores e governantes clamem por iniciativas privadas, quando ao mesmo tempo tecem todos os esforços e ardis por castrar todas elas sem um pingo de decência, honra patriótica, ou pura e simples vergonha na cara.

Mirandela, 12 de Janeiro de 2012

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