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Cópia Privada

A Lei da Cópia Privada é muito mais vasta do que a defesa dos direitos de autor ou dos direitos dos consumidores. É, claramente, muito mais vasta do que os interesses das entidades de gestão coletiva de Direitos de Autor.

Já existe uma lei da cópia privada. Em toda a Europa existe. Considera-se esta uma forma de devolver aos autores uma parte da riqueza que criam e que nunca lhes é paga. Porque existir criação “cultural, artística, académica” alimenta uma séria de indústrias (reprografia, informática, etc.) que não remuneram essa mesma criação. Se é o mais correto? Não. Porque o caminho é um investimento público forte na cultura e na ciência. Infelizmente, o caminho seguido tem sido o oposto. E é num quadro em que tudo está mal que somos chamados a pensar sobre uma má solução. Um exercício complicado, mas vamos a ele.

Antes de mais, e porque muito tem sido dito misturando diversos assuntos, talvez valha a pena explicar que, tendo a legislação sobre cópia privada impactos amplos, esta não passa da discussão sobre como aplicar e distribuir uma taxa. O Bloco de Esquerda tem defendido que a taxação associada à cópia privada só tem sentido como contrapartida à liberdade de partilha (que é, obviamente, diferente da contrafação e outros usos abusivos). Mas não é na legislação da cópia privada que se decidem muitos dos aspetos essenciais sobre forma como se lida hoje com a partilha de conteúdos protegidos por direito de autor ou com a distribuição da remuneração pelos autores. Em Portugal há muitos autores que não conseguem ser ainda representados por nenhuma entidade de gestão coletiva de direitos de autor e que gostariam de o ser. E uma pessoa continua a poder ser presa por partilhar conteúdos via internet. O que não tem sentido nenhum, mas também não tem nada que ver com esta lei. E é nestas matérias que teremos mais iniciativas, aprofundando o debate dos “Direitos contra Direitos” e retirando desse debate propostas concretas.

Voltemos, pois, à cópia privada. Existe uma lei que está desatualizada porque o mundo avança. O que fazer agora? Acabar com ela ou atualizá-la? Acabar com ela é tentador, mas atualizá-la aparece como a única solução sensata neste momento. E por isso, a atualização já tarda. Fica agora a segunda parte da pergunta: atualizá-la como?

O projeto de lei que o PS apresenta é uma atualização feita à medida das entidades de gestão coletiva de direitos de autor. E esta é uma lei com implicações muito para lá da gestão coletiva de direitos de autor; reduzi-la a esse universo é condená-la e acaba por não servir sequer os autores. Destaco problemas de três tipos:

1. Para atualizar a lei da cópia privada é preciso começar por compreender o que não funciona na legislação atual sobre cópia privada. E o que não funciona é que o Código do Direito de Autor e Direitos Conexos prevê o direito à cópia privada, mas os mecanismos que a lei prevê para garantir esse direito, face aos instrumentos que a indústria tem criado para impedir cópia privada, não funcionam. Veja-se a incapacidade para lidar com o DRM, que não só impede a cópia como chega a obrigar ao uso de um determinado software para se ter acesso ao conteúdo que se comprou. E portanto, para se atualizar a lei da cópia privada é essencial assegurar o direito à cópia privada, com mecanismos como a legalização da circunvenção do DRM e outros (e falar com quem se preocupa com estes problemas é bem importante para os resolver). Não se pode exigir que a cópia privada seja paga ao mesmo tempo impossibilitar a cópia privada.

2. Uma vez que o objetivo é servir os autores, é necessário pensar quem são esses autores e o que querem. Há autores que não querem nunca ser remunerados pelo seu trabalho e estão no seu direito. Para esses esta lei não levanta problemas. Ficam de fora, um pouco como alguém que paga impostos e nunca recorre à Escola Pública ou ao Serviço Nacional de Saúde. É um direito. Mas há autores que, em trabalhos diferentes, tomam opções diferentes. Podem optar por colocar uma obra imediatamente em domínio público, disponibilizar um outra com uma licença Creative Commons, mas, num outro caso, querer ser remunerados pelo seu trabalho. Mas em Portugal não existe ainda uma solução que compatibilize o recente universo dos diferentes tipos de autoria e a gestão coletiva de direitos de autor, pelo que muitos autores são excluídos sem o desejarem. E, como este projeto de lei não aborda esse problema acaba por restringir abusivamente o universo de autores que têm acesso à “distribuição equitativa de valor” que se anuncia.

3. O que está em causa, além da distribuição, é, obviamente, a taxa que se cobra. A lei atual prevê uma taxa de 3% sobre fotocópias, CDs, DVDs e alguns outros equipamentos; o projeto de lei do PS prevê alargar o tipo de equipamentos taxados e que a taxa passe a ter montantes fixos que, nalguns casos, são muito elevados (por exemplo: um disco rígido com 1TB passa a pagar 20? de taxa). O que é proposto representa um aumento de custos de tal forma desproporcionado de uma série de equipamentos que acaba por vedar o acesso de quem tem menos recursos económicos a bens, que hoje são essenciais, como discos duros ou impressoras. E, como não prevê sequer a isenção da taxa para profissionais, só para entidades coletivas, facilmente imaginamos que alguém que cria música, fotografia ou software irá pagar taxas exorbitantes para contribuir para o que deveria ser uma “distribuição equitativa”. O montante das taxas previstas acaba assim por prejudicar tanto os consumidores como os autores.

Dito isto, acrescento duas palavras sobre dois problemas laterais que este projeto de lei aborda e bem:

1. Reforça a impossibilidade de um autor, por contrato, ser obrigado a prescindir dos seus direitos. Ou seja, nenhuma produtora de música ou televisão, nenhuma editora ou empregador, pode forçar um autor a abdicar dos seus direitos. O que é muito importante, porque é uma luta grande e desigual com que muitos autores e intérpretes defrontam todos os dias. E o próprio Partido Socialista, até há pouco tempo e ao arrepio do Código do Direito de Autor e Direitos Conexos, atacava os autores e intérpretes quando, na legislação sobre contratos de trabalho para o setor do espetáculo e audiovisual, incluía uma cláusula que permitia que o intérprete abdicasse da gestão coletiva dos direitos conexos. Ora, a menos que estejamos a imaginar, por exemplo, um ator em casa a contar quantas vezes passa a dobragem que fez e a telefonar à televisão a cobrar os seus direitos, percebemos que esta era uma forma de negar os direitos. E o Bloco de Esquerda lutou (e conseguiu convencer o resto da oposição) para acabar com esta norma. Foi um avanço que é agora reforçado.

2. Inclui uma alteração à legislação relativa às penhoras, fazendo os direitos de autor equivaler a salário. É muito importante, porque os direitos de autor são, na realidade, o salário de muitos autores. E até agora, em caso de penhora, podiam penhorados na totalidade ficando o autor sem capacidade de sobrevivência. É um erro que esta proposta corrige.

Finalmente, uma palavra sobre o percurso deste projeto de lei do Partido Socialista e que começou por ser uma proposta de lei do Governo Socialista que nunca foi apresentada. Foi feita com as associações representadas na secção de direito de autor do Conselho Nacional de Cultura, o que é um bom princípio. Mas não se ouviu mais ninguém, o que é péssimo. Depois esteve dois anos na gaveta e foi finalmente apresentada já em pré-campanha numa sessão na sede da SPA, para chegar agora ao Parlamento, sem mais nenhuma reflexão. Uma desgraça.

A Lei da Cópia Privada é muito mais vasta do que a defesa dos direitos de autor ou dos direitos dos consumidores. É, claramente, muito mais vasta do que os interesses das entidades de gestão coletiva de Direitos de Autor. Pensar que se pode legislar ouvindo só uma pequena parcela do que está em causa, é um erro. O projeto de lei não ter sido votado, e ter baixado à comissão para audições amplas, é uma vitória do bom senso. Falta o resto.

Sobre o/a autor(a)

Dirigente do Bloco de Esquerda. Atriz.
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