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(I)moralismos

"Portugal é o único país com uma distribuição claramente regressiva" do impacto da austeridade entre 2008 e 2011. Pondo a coisa em Português corrente: foram os mais pobres que mais pagaram os custos da austeridade posta em prática pelo Governo de José Sócrates.

Fosse o Bloco de Esquerda a dizê-lo e logo jorrariam acusações de sectarismo e de benefício à direita ultraliberal. Mas não foi o Bloco de Esquerda, foi a Comissão Europeia que num estudo agora tornado público, que compara os efeitos das medidas de austeridade adotadas na Estónia, na Espanha, na Grécia, na Irlanda, em Portugal e no Reino Unido, concluiu: "Portugal é o único país com uma distribuição claramente regressiva" do impacto da austeridade entre 2008 e 2011. Pondo a coisa em Português corrente: foram os mais pobres que mais pagaram os custos da austeridade posta em prática pelo Governo de José Sócrates.

Os nostálgicos do PEC IV, europeístas convictos, têm agora de responder a este libelo acusatório da Comissão Europeia. Durante o Governo do Partido Socialista, os 20% mais pobres perderam entre 4,5% e 6% do seu rendimento, ao passo que os 20% mais ricos perderam em média 3%. Isto sem contar com os efeitos devastadores que tiveram, nas vidas dos mais pobres, os cortes nos serviços públicos. Por alguma coisa Portugal é o país mais desigual da União Europeia. E não é certamente por má vontade das estatísticas do Eurostat.

O estudo para à entrada da atual governação das troikas externa e interna. E a única inferência óbvia é esta: o fosso de custos suportados por pobres e por ricos só tende a agravar-se dramaticamente. A subida de impostos sobre o consumo de bens de primeira necessidade (mas nunca sobre a circulação de capitais), o esbulho de salários aos funcionários públicos, a adoção do utilizador-pagador na saúde, não têm nenhuma lógica redistributiva, antes acentuam a regressão dos impactos. Por outras palavras, o que o PS fez mal, PSD e CDS fazem bem pior ainda. O Presidente da República, esse, promulga os males de uns e de outros e depois ensaia discursos de demarcação. Varia a intensidade mas persiste o resultado objetivo: os pobres pagam proporcionalmente mais do que os ricos os sacrifícios exigidos. E nessa persistência há uma outra: como escrevia ontem Helena Garrido, "as lideranças em Portugal parecem conseguir evitar pagar as crises com o beneplácito de sucessivos governos, sejam socialistas sejam social-democratas. Não suportam a fatura da austeridade nem têm qualquer tipo de solidariedade eficaz com as dificuldades do país."

Convenhamos que nos últimos meses essas lideranças perderam a vergonha toda. Que a Caixa Geral de Depósitos transfira as contas do seu balcão no offshore da Madeira para as Ilhas Caimão é um sinal inequívoco que o banco público (e, portanto, o Governo indirectamente) dá à sociedade portuguesa sobre qual deve ser a hierarquia de valores a adotar: a borla fiscal é preferível à responsabilidade de pagar os impostos que um horizonte de mínima justiça exige. Que Soares dos Santos e a quase totalidade das cotadas no PSI-20 transfiram formalmente para fora do País o controlo acionista dos seus grupos, retirando assim receita fiscal avultada a Portugal, evidencia que o seu moralismo ("O país vai mal [...] tem-se vindo a perder a noção de ética e do comportamento social responsável", sentenciava o patrão da Jerónimo Martins) se reduz a pó quando o truque fiscal é sedutor. Que a PT antecipe a distribuição de dividendos para os subtrair a tributação que a democracia entendeu ser justa, mostra que o capital recorrerá a tudo (e é tanto!) o que estiver ao seu alcance para se manter isento de sacrifícios.

Esta é a real ética social na austeridade que aprisiona o País na cultura da desigualdade. Contra a imoralidade de um país assim, governo após governo, a esquerda que não desiste de o ser tem de ser capaz de trazer uma nova ética, assente numa nova ótica.

Artigo publicado no jornal “Diário de Notícias” em 6 de janeiro de 2012

Sobre o/a autor(a)

Professor Universitário. Dirigente do Bloco de Esquerda
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