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Continua o forró

Há-de chegar o momento exato em que os opinion makers até podem fazer o pino, podem cantar, zurrar, chorar ou ganir, que o pessoal há-de olhar e dizer, já chega.

A meia-noite do primeiro de Janeiro, aclamada como sempre com um copo de champanhe, ou coisa parecida com bolhas e estrondos de rolha, chegou trazendo muito IVA, muita desfaçatez da elite económica, muitas cumplicidades maçónicas e as habituais mensagens frouxas e inócuas dos do costume.

Manhosos, os feitiços do natal permanecem dependurados nas portas, janelas e varandas das casas. As árvores natalícias piscam ainda na bagunça dos fios elétricos, encavalitados e enroscados uns nos outros.

Alguns pais natais, comprados nas lojas dos chineses, hão-de ficar naquela tentativa de enforcamento e entrada de ladrão, durante vários meses. Um ou outro vai chegar até ao verão, sem que ninguém o salve do esquecimento, assim afogueado e suado sob um sol inclemente. Talvez ao lado de bandeiras murchas, abandonadas, colocadas nas varandas já sem cor nem ardor de futebol.

Continua o forró. Continua a metralha adjetiva da economia.

E mesmo a luz pálida dos dias a molengar de ansiedade não mudou.

Este é um país que parece conformado com a crise de 2012. Já se havia, pensam eles, conformado com a crise de 2011 e com a de 2010, 2009, e aí por diante. A crise tem sido sempre a desculpa dos governos para justificar sacanices.

No meio da tempestade voluntária, tudo continua a trabalhar para o sucesso da barca monetarista.

Cada peça tem a sua tarefa, cada segundo o seu segredo. Os governos providenciam os ventos que enfunam as velas; os responsáveis pelo som tratam do cordame ideológico com que hão-de prender toda a estrutura que se apoia no mastro; chiam as madeiras na vergasta das ondas, como multidões num prenúncio de perigo; balançam os navios estonteados pelos deuses endoidecidos e broncos que se apoderaram dos lemes. Lemes abandonados por oficiais negligentes, corruptos e vendidos. Inconscientes, dementes e incompetentes os novatos no leme não conseguem sequer decifrar as tabelas, as tábuas das marés. Continua o forró. Música maestro, ou maestrina. Em 2012 tudo como dantes, quartel-general em Abrantes, ou Berlim, ou outro sítio qualquer, que a geografia é coisa mutável.

Entre nós os oligarcas da ética, da decência fiscal, da pose moral, fazem-nos adeus. Um adeus holandês. Tot ziens.

Os oligarcas da decência são, evidentemente, criaturas inferiores, equívocos do tempo que corre, que o próprio tempo se encarrega de corrigir. São restos da história. Matéria acrílica. Resíduos. Enfiam-nos barretes e Barretos prefaciadores com aquela voz mansa que esconde a indignação pungente contra os que não pagam impostos.

Integram a matilha silenciosa que se esconde por detrás dos aparelhos dos governos, das leis fiscais e nacionais e europeias, seja lá isso o que for. Para a pitança da fuga fiscal na desbunda do lucro.

Continua a haver no ar um cheiro à peçonha da miséria. Muito mais que a pobreza, a miséria constrói-se a pouco e pouco, um IVA aqui, uma lei das rendas acolá. Tem alicerces nos discursos bem pensantes dos que nos entram em casa a apelar à contenção, ao sacrifício e à inércia, ou nos lances daqueles que todos os dias nos vendem aos bocadinhos como dantes os donos dos escravos os vendiam nos mercados.

Continua o forró.

As sociedades também têm instintos de conservação. Parece que não, mas têm. Há-de chegar o momento exato em que os opinion makers até podem fazer o pino, podem cantar, zurrar, chorar ou ganir, que o pessoal há-de olhar e dizer, já chega. Calados, caladinhos que o vosso piar já enjoa. Acabou.

Tínhamos tanto para andar e para aqui estamos a fazer marcha-atrás. Parece que estamos a mudar de século. Para trás. A regressar ao século de cuja estação já saímos há tanto tempo. Que se lembrem os culpados de todos os retrocessos que o século vinte foi um século de revoluções.

Sobre o/a autor(a)

Advogada, dirigente do Bloco de Esquerda. Escreve com a grafia anterior ao acordo ortográfico de 1990
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