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Fukushima: o inferno que não termina

Uma solução definitiva para a crise nuclear, que não se restringe apenas aos reatores da central, levará algumas décadas. A maioria de nós não estará, provavelmente, presente no dia em que isso ocorrer.

O dia 11 de março de 2011 entrou para a história como um dos mais trágicos já registados no Japão. Às 14:46h, um violento terremoto, de magnitude 9, cujo epicentro foi na costa da província de Iwate, sacudiu uma ampla área de Honshu, a principal ilha do arquipélago japonês.

Em fração de segundos o inferno invadia a vida de milhões de pessoas, provocando cenas terríveis, que não se viam desde que o imperialismo americano despejou as bombas atómicas sobre Hiroshima e Nagasaki, durante a Segunda Guerra Mundial.

O terremoto causou profundos estragos, que só não foram maiores pelo facto de o Japão estar relativamente preparado para esses acontecimentos. Mas, minutos após o inicio da tragédia, atingiu a costa um poderoso tsunami que, dependendo da localidade, atingiu de 10 a 40,5 metros em mais de 500 quilómetros da costa do nordeste, principalmente nas províncias de Iwate, Miyagi e Fukushima e, em menor proporção, Ibaraki, Chiba, Tóquio, causando danos, inclusive na província de Kanagawa, ao sul de Toquio, bem como Aomori, ao norte de Iwate.

A tragédia deixou 15.841 mortos, 3490 desaparecidos e 5.890 feridos, totalizando 25.221 vítimas. Cerca de 400 mil pessoas ficaram desabrigadas no momento posterior ao desastre. Cerca de 350 mil construções foram destruídas ou parcialmente danificadas. Cerca de 8 milhões de casas e prédios ficaram sem luz e 1,8 milhão de imóveis sem água. Foram afetados 23.600 hectares de terras agrícolas. Foram destruídos ou danificados mais de 300 portos e, também, foram destruídas ou danificadas mais de 22 mil embarcações pesqueiras. Os povoados atingidos pelo tsunami, em 500 quilómetros de costa, foram totalmente destruídos e grandes áreas de importantes cidades do nordeste sofreram o mesmo destino, como em Sendai, Ishinomaki, Kesennuma e Miyako.

As cenas impressionantes e estarrecedoras que percorreram o mundo pela televisão e Internet serão relembradas neste final de ano e não há como descrever em palavras o que foi filmado e visto.

A crise nuclear de Fukushima, mentiras, radiação e condenação de trabalhadores à morte

O tsunami invadiu a central nuclear Fukushima 1, que era um dos maiores projetos nucleares existentes, provocando um dos maiores acidentes industriais da história do capitalismo equivalente a Chernobyl, na Ucrânia, e Bhopal, na Índia

O governo, na pessoa da primeiro-ministro de então, Naoto Kan, proferiu uma quantidade de mentiras suficiente para se publicar uma enciclopédia O que nos impede de repetir tudo que foi dito. Basta lembrar que o acidente foi inicialmente caracterizado como de nível 4, posteriormente modificado para 5 e, finalmente, para 7, que é o nível mais alto na escala de desastres nucleares, como foi Chernobyl. Facto que deixou clara a manipulação da opinião publica mundial pelo governo japonês.

Em dezembro, o mais importante jornal japonês, o Yomiuri, no editorial da edição em inglês, escreveu que é necessário que um comité independente esclareça a verdade sobre o acidente nuclear de Fukushima 1. É a prova mais cabal de que, até agora, a verdade é conhecida por apenas um grupo seleto de pessoas, do governo, da TEPCO (Tokyo Electric Power Company), a operadora da central e, provavelmente, da família imperial. Nós, que vivemos no arquipélago, continuamos na ignorância sobre os verdadeiros factos.

Isso não seria um grande problema se não existisse uma coisa chamada radiaçãonuclear. Com o passar do tempo, surgem novas provas de que a crise nuclear japonesa é muito maior do que já foi dito nestes últimos meses.

A crise nuclear deixou claro que esse tipo de energia está muito longe de ser uma fonte segura, principalmente quando manipulada por empresas privadas cujo objetivo principal é o lucro.

No momento do acidente, o sistema de refrigeração da usina entrou em colapso, levando ao aquecimento dos reatores. Como decorrência, ocorreram algumas explosões, as chamadas explosões de hidrogénio, que libertaram uma grande quantidade de radiação nuclear. Com o sistema de refrigeração liquidado, a TEPCO, em total desespero, teve de usar a água marinha, bombeando água do mar situado frente à usina.

A crise nuclear provocou a emissão de radiação num nível que ninguém sabe, ou, quem tem a informação, mantém-na escondida da opinião pública. Foi lançada uma grande quantidade de água contaminada no Oceano Pacifico, e não há motivos para acreditar que o volume informado pelo governo e pela TEPCO sejam verdadeiros. Levará anos para que investigadores possam provar a veracidade dessa informação. Os mananciais foram contaminados em proporções que ninguém conhece, já que não existe investigação sobre o assunto. Os produtos agrícolas continuam a ser contaminados. O maior exemplo disso é a colheita do arroz da província de Fukushima. Após o governo ter afirmado que os níveis de contaminação eram inferiores aos limites (duvidosos) estabelecidos pelo governo, a imprensa divulgou que arroz da região estava com índices de contaminação superiores aos estabelecidos pelo mesmo. O governo fez as suas averiguações e voltou a afirmar que, agora, sim, não havia problemas. Passadas algumas semanas, foi descoberto, em Fukushima, mais arroz contaminado com níveis acima dos estipulados. Agora, só continua a acreditar no governo quem tem algum parafuso a menos. O que contribui para aniquilar os agriculturas locais e a credibilidade da opinião pública já devidamente abalada.

Investigadores japoneses e estrangeiros têm alertado para o facto de o “trabalho sujo” de Fukushima 1 estar a ser subcontratado. Grupos civis, como o Centro de Informação Nuclear dos Cidadãos, baseado em Tóquio, denunciam que 96% da radiação daninha ao organismo é absorvida pelos trabalhadores subcontratados. Enquanto o Comité Científico dos Efeitos da Radiação Atómica das Nações Unidas adverte que uma dosagem acima de 30 milisieverts de radiação anual pode levar ao cancro, o governo japonês aumentou de 200 para 250 milisieverts o limite da exposição, afirma o professor Kristin Shrader-Frechette, da Universidade de Notre Dame. Essa exposição permitida pelo governo japonês significa uma verdadeira condenação à morte dos trabalhadores subcontratados, cuja maioria não tem informações nem conhecimentos a esse respeito.

Cabe lembrar que a radiação é uma coisa que não se vê, não se ouve e não se cheira, e é difícil provar que a contaminação radioativa estará na origem de muitas mortes que vão se verificar entre os trabalhadores subcontratados nos próximos anos.

O governo japonês comunicou recentemente que a crise de Fukushima 1 está sobre controlo, já que a TEPCO conseguiu a “Cold shutdown”, que significa que os reatores danificados estão sob uma temperatura controlada em torno de 100 graus centígrados. Não é um termo preciso, já que a situação pode fugir novamente ao controlo, caso algum dos frequentes terremotos que assolam diariamente a província de Fukushima deite por terra todos os esforços feitos até agora.

Uma solução definitiva para a crise nuclear, que não se restringe apenas aos reatores da central, levará algumas décadas. A maioria de nós não estará, provavelmente, presente no dia em que isso ocorrer. Existem milhões de metros cúbicos de terra contaminada e um volume imenso de lixo radioativo que ninguém quer e ninguém sabe onde armazenar.

Os povoados que existiam nos 500 quilómetros de costas continuam destruídos. Ninguém sabe se serão reconstruídos, quando e onde, já que alguns discutem a reconstrução noutro local, longe do mar. Milhares de trabalhadores do nordeste continuam sem emprego, sobrevivendo do seguro desemprego, que será cortado dentro de algumas semanas, de acordo com a legislação japonesa.

De tudo o que foi dito, é verdade que as novas construções japonesas têm uma resistência aos terremotos. Mas o que ficou claro é que nem o Japão nem qualquer país está preparado para os tsunamis. Estudos recentes afirmam que na província de Miyagi, uma das mais atingidas pelo tsunami, a possibilidade de que um terremoto de magnitude superior a sete ocorra nos próximos 30 anos é de 99%!

Em Fukushima 1, nos arredores, e na costa do nordeste, o inferno não termina.

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Sobre o/a autor(a)

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Neste dossier:

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