PMA, preconceitos e discriminação

porJosé Soeiro

23 de December 2011 - 0:01
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A lei de Procriação Medicamente Assistida que existe tem limitações e é preciso torná-la mais abrangente e não discriminatória. E a crise não é pretexto para que nada se discuta para além das questões económicas.

A discussão sobre a lei da Procriação Medicamente Assistida (PMA) vai voltar ao parlamento, pela mão do Bloco de Esquerda. Ainda bem: a lei que existe tem limitações e é preciso torná-la mais abrangente e não discriminatória. E a crise não é pretexto para que nada se discuta para além das questões económicas.

As grandes limitações da lei são 3. Em primeiro lugar, ela concebe a PMA como um método subsidiário e não alternativo de procriação, ou seja, ela exige que a mulher que recorre a estas técnicas tenha um diagnóstico de infertilidade – são apenas razões clínicas, e não de escolha e felicidade, que justificam o acesso à PMA. Em segundo lugar, ela coloca as mulheres sob tutela dos homens: mulheres sozinhas ou casais de lésbicas não podem recorrer hoje à PMA. Em terceiro lugar, ela proíbe terminantemente a maternidade de substituição.

O projecto do Bloco quer eliminar estas três barreiras. Ou seja, propõe que deixe de ser exigido o diagnóstico de infertilidade e que passe a entender-se a PMA como uma alternativa que resulta da escolha da mulher – como acontece em Espanha há mais de 20 anos com os bancos de esperma. Determina que as mulheres sozinhas e casais de lésbicas também tenham acesso, sem restrições. E consagra a possibilidade da maternidade de substituição (as chamadas “barrigas de aluguer”), neste caso exclusivamente por razões clínicas – ausência de útero e lesão ou doença deste órgão que impeça a gravidez de forma absoluta e definitiva – e destituídas de qualquer relação comercial.

Inicialmente o projecto do Bloco, porque altera a PMA e não o código do registo civil, não contemplava na sua redacção que, no caso de um casal de lésbicas recorrer à PMA, se presumia automaticamente os direitos de parentalidade da outra pessoa que não a que foi inseminada artificialmente.

É que mesmo que a lei da PMA o reconheça, o registo civil não o faz, impedindo o registo de duas mães. Por isso, aliás, é que é preciso alterar o código do registo civil e a cláusula discriminatória introduzida pelo PS na lei do casamento, que veda a adopção a casais de pessoas do mesmo sexo – e essas devem ser as próximas iniciativas do Bloco, a apresentar quanto antes. No entanto, depois de interpelado por várias pessoas sobre o assunto, o Bloco reapresentou esta semana a sua lei, acolhendo a formulação sugerida pela ILGA e passando a ser explícito que, no caso de duas lésbicas, é reconhecida automaticamente a parentalidade do outro membro do casal, como acontece com casais heterossexuais. É óbvio que haverá sempre juristas que dirão que o direito que consagramos na lei da PMA, de registar duas mães, depois não tem (ainda!) acolhimento no registo. Mas mais vale que a lei da PMA seja exemplar e que, por isso, esteja mais avançada que a do registo, do que ter duas leis não contraditórias, mas cuja coerência é a discriminação.

Dos outros partidos, ainda nada se conhece, porque não existe mais nenhuma proposta. Mas o que vem a público é absurdo. Aparentemente o PS propõe acabar com a exigência de que quem recorre à PMA viva em casal, mas pretende manter a exigência da infertilidade – ou seja, veda na prática o acesso a todas as lésbicas, a menos que elas façam prova da sua infertilidade (o que pressupõe que elas tenham tentado fazê-lo com um homem, presume-se...). Não haverá, se assim for, nem fim da discriminação no acesso, nem reconhecimento de direitos parentais, nem a possibilidade da maternidade de substituição. Da direita, o mesmo tipo de preconceitos e mais alguns.

A discussão pública ainda agora começou, é certo. Mas por que não dar-lhe força? Ou não é este um bom momento para desconstruir tantos fantasmas sobre género, reprodução e famílias?

José Soeiro
Sobre o/a autor(a)

José Soeiro

Dirigente do Bloco de Esquerda, sociólogo.
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