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O que é humilhante é não haver políticas culturais! A tragédia é isto ser assim nos vários níveis da administração pública.

É tempo de se equacionar a obrigatoriedade de os municípios desenvolverem, através de processos democráticos e participativos, políticas culturais dignas desse nome. Contributo do nosso leitor Rui Matoso.

Lamentavelmente não consegui assistir à conferência do SEC Francisco José Viegas, organizada pela Sedes no passado dia 16 em Lisboa. Recorri por isso a algumas afirmações suas veiculadas pelo jornal Público1.

 

Comecemos desde logo pelo dislate “Não é humilhante não haver subsídios, humilhante é não haver tanta gente quanto gostaríamos no teatro”, diz ainda o SEC que não acredita na expressão “políticas culturais”, por lhe sugerir uma outra, a “política do espírito” do Estado Novo. Isto revela bem o que é estar no lugar errado na hora errada, porque quem faz esta conexão entre o que deveriam ser políticas culturais em 2011 e aqueloutra dos anos 30 do século passado vive numa perigosa ambiguidade, ou é a erupção de um desejo recalcado ou a afirmação da ignorância relativamente ao que foi o desenvolvimento das políticas culturais democráticas na Europa pós segunda guerra.

 

No primeiro caso, ainda que de forma subliminar, estaríamos na senda de António Ferro, que tal como Gobbels, tinha uma perceção clara de como a cultura pode ser um poderoso instrumento de poder ao serviço do Estado, designadamente na construção de uma retórica onde os conflitos sociais são harmonizados em torno de grandes desígnios nacionais: o pensamento único. Traduzindo para o nosso universo contemporâneo, na linguagem do soft power e da biopolítica, a produção cultural independente seria o alvo a abater, retirando-lhe as subvenções públicas e colocando-a na esfera de consumo das demais mercadorias, retirando assim à cultura e às artes a sua função política, social e crítica, remetendo-as para o consumo supérfluo e pequeno-burguês, de breves momentos de escape e entretenimento que anestesiam momentaneamente a vivência real e efetiva de um quotidiano austero e doloroso.

 

No segundo caso, o desconhecimento do que foi a senda europeia do desenvolvimento cultural e o papel do Conselho da Europa nos finais na década de 40, designadamente através da Convenção Cultural Europeia, até às mais recentes propostas como a “Agenda 21 da Cultura” não permitem ao SEC descortinar, p.ex., acerca da interdependência entre biodiversidade e diversidade cultural no enquadramento de um desenvolvimento humano sustentável.

 

Política e dinheiro

Parece-nos óbvio que é humilhante para qualquer país a inexistência de políticas culturais, porque na sua ausência persiste o atávico lassez-faire em que os nossos governantes e autarcas camarários (com honrosas excepções) se tornaram peritos. Peritos em falta de transparência, peritos em despesismo ou peritos no uso ornamental da cultura para fins eleitoralistas. Portanto, se ao nível nacional a ausência de políticas democráticas para a cultura é grave, é de igual modo -ou talvez ainda mais- ao nível local, até porque as despesas dos municípios em cultura representam o triplo do orçamento do Estado2. Seria por isso tempo de se equacionar a obrigatoriedade de os municípios desenvolverem, através de processos democráticos e participativos, políticas culturais dignas desse nome. Só desse modo será possível promover o desenvolvimento cultural e criativo das cidades, garantir o direito constitucional à participação cultural na sua diversidade de expressões, bem como sustentar um alargamento da base social dos públicos e a sua efectiva aproximação aos projectos, equipamentos e instituições culturais.

 

Sem este trabalho de base ancorado numa lógica de serviço público, rigoroso e competente, com o envolvimento directo dos cidadãos em todas as suas fases, só nos resta a deriva nefasta da privatização cultural em curso, ou como diz o SEC «a necessidade de atrair os privados para o apoio à cultura». Sobre esta necessidade é difícil discordar, todos os apoios são bem vindos desde que venham por bem, e que não sejam a mera contrapartida do desinvestimento público, como é notoriamente o caso.

 

Contudo, está claro que esta tendência crescente para atenuar o peso do Estado no apoio à criação artística, «procurando promover uma maior independência das estruturas» é uma daquelas falácias correntes quando se confunde políticas culturais com controle e manipulação política, ou como diz o SEC “o dinheiro do Estado, para sermos justos, mata a independência”. Mas porque razão haveria o financiamento público de matar a independência das entidades artísticas ?

 

Esta lógica maquiavelista só é verdadeira no pressuposto de que existe o dever de subserviência aos interesses do poder político-partidário, abrindo assim o debate em torno dos favorecimentos e corruptelas entre os subvencionados. Se esta lógica fizesse algum sentido no âmbito do financiamento público, o que dizer então da dependência face ao financiamento privado? Aí sim as entidades artísticas estão sujeitas às arbitrariedades e exigências comerciais e corporativas das empresas ou das multinacionais. É o modelo arcaico da legitimação cultural que vinga, bem como o objectivo anti-democrático de satisfazer clientelas através do efeito distintivo e elitista do consumo cultural. E mais, se fosse assim no que respeita às subvenções da administração central, imagine-se o que seria (e efectivamente é em muitos casos) face aos subsídios da administração local, onde a proximidade entre políticos e entidades culturais é mais suscetível de exercer influência e onde o preço da sobrevivência se faz à custa da transformação da criatividade em aceitação da dominação e reprodução sociocultural mais básica.

 

Talvez a questão pudesse mesmo ser colocada de modo inverso, isto é, tendo em conta que o orçamento do Estado de 2012 para a cultura representa uns míseros 0,2%, e que a economia da cultura foi geradora de 2,8% de toda a riqueza criada em Portugal3, a relação de dependência parece ser a do Estado face às economias culturais e criativas!

 

Ou seja, o discurso da subsidio-dependência evocada pelos conservadores de direita é hoje mero reflexo condicionado de quem em vez de agradecer o que os agentes culturais fazem pela economia do país, se coloca no pedestal de plasticina como se estivesse na condição de exercer alguma espécie de soberania.

 

 

Rui Matoso

dirigente do Bloco de Esquerda, gestor cultural e professor universitário

 


Notas:

2 - Segundo os dados recolhidos através do Inquérito ao Financiamento Público das Actividades Culturais, em 2009 as Câmaras Municipais afectaram um financiamento de 649,8 milhões de euros a actividades culturais (INE, 2010).

3 - Dados relativos a 2006, fonte: O Sector Cultural e Criativo em Portugal, Janeiro de 2010, Coordenação Global de Augusto Mateus.

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